Poemas de Alexandre Brandão

Leia os poemas "Na mangueira e fora dela", "O rouxinol" e "O homem íntegro"
O poeta Alexandre Brandão, autor de Nenhuma poesia: uma antologia
01/08/2020

Na mangueira e fora dela

Sei bem por que subia na mangueira,
sei bem, muito bem, aliás.
Um pequeno precisa cultivar refúgios,
treinar estar só, na intimidade, aprender o que se é, afinal.

No alto da árvore,
eu era grande, aquele que tudo via
enquanto chupava manga, a agridoce Carlota,
e tateava futuros.

Do alto,
via miúdo meu pai entrando e saindo de casa
via miúdo minha mãe descer as escadas
via miúdo a delicada Célia tomar café na varanda.

No alto da mangueira,
inventava conforto nos galhos, bebia o vento que festava nas folhas,
ria do voo amedrontado de algum pardal.
Lá no alto, sentia as primeiras alegrias minhas, só minhas.

Sei bem por que subia na mangueira,
sei bem, aliás, muito bem.
Só não sei por que desci e, no chão rasteiro,
tornei-me miúdo até aos olhos de quem caminha ao meu lado.

……………………

O homem íntegro

Não sou desses homens que têm dois lados
O lado A em contraposição ao B
O beco às terças, a avenida aos domingos
O comezinho de costas para o incomum
A alma contra o corpo.

Mesmo assim ou por isso mesmo
Amo desconfiado
Trabalho desconfiado
Vivo desconfiado
— há, na integridade, uma sombra.

Tenho, como todos,
Peito e dorso
Bunda e coco
Ombro e sexo
Joelho e calcanhar.

Dentro e fora, o mesmo rosto
Em feriados e dias úteis, o mesmo esforço
Na mesma bica, o sedento e o saciado.

Tenho como certa
A hora de cortar o cabelo
E como medo inconfesso que me aparem a sombra.

……………………

O rouxinol

O rouxinol do meu silêncio é mudo
apesar de seu espalhafatoso estar quieto no mundo.
A melodia que nele é apenas potência
sabe da árvore o futuro caruncho
e embala caminhões e motocicletas
: aves do nosso abandono que
avoejam a floresta derrubada e já há muito esquecida.

Esse rouxinol de pio interno, silêncio em assobio
— beleza para o sistema digestivo e o coração imaquinário —,
ao piscar não desloca o amor para a esquina do ódio
nem tampouco o ódio para uma esquina alhures.
Seu canto, meu silêncio inaudível,
é, de Deus outra oferenda indecifrável
: rolimãs, cataclismos, broas de milho ou intempéries
coisas assim, entre outras.

Meu silêncio apassarado, rouxinol na muda,
corta com serrote o céu e esfrega suas penas nas nuvens
num erótico voo imóvel. O rouxinol do meu silêncio,
além de mudo, é pedestre e já não anda. O rouxinol
do meu silêncio
não está aqui
neste lamento.

Alexandre Brandão

Mineiro radicado há 40 anos no Rio de Janeiro, estreou na literatura nos anos de 1980 com poemas no Suplemento Literário de Minas Gerais. Tem sete livros de contos e crônicas. Reuniu seus poemas no livro Nenhuma poesia: uma antologia (2020).

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