Alberto Mussa

“Eu não reflito o meu tempo. Não tenho a menor preocupação com o meu tempo.”
Alberto Mussa. Foto: Matheus Dias
01/07/2010

Na noite de 17 de junho, o Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e o Sesi Paraná — recebeu o segundo convidado do ano, o escritor Alberto Mussa. Autor de livros como Elegbara, O enigma de Qaf, O trono da rainha Jiga, O movimento pendular e Meu destino é ser onça, Mussa, que nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1961, também é tradutor, tendo vertido do árabe a coletânea de poesia pré-islâmica Os poemas suspensos. Sua obra já foi publicada em Portugal e traduzida para o francês, o inglês, o espanhol e o italiano, além de ter recebido prêmios como o Casa de Las Américas, o APCA e o Machado de Assis. Na conversa que teve com seu público no Teatro Paiol, em Curitiba — mediada pelo escritor e jornalista Luís Henrique Pellanda —, Alberto Mussa falou sobre sua vasta formação como leitor e escritor, detalhou seus processos criativos, relembrou sua descoberta da literatura africana e discorreu acerca do racismo que se deixa perceber, latente, na obra de autores como Monteiro Lobato e Mário de Andrade.

Diversão
Não acredito que alguém compre um livro de literatura com uma finalidade específica. A gente pode obter, de qualquer experiência de vida, algo que nos seja útil, inclusive o prazer de simplesmente relaxar, descansar, aproveitar, comover-se, rir. De certa forma, isso também é uma aplicação que se presta a alguma coisa. Mas quando falei sobre a inutilidade da literatura (numa entrevista anterior), falei especificamente sobre aqueles que pregam que você tem que ler para se tornar uma pessoa melhor, que só quem lê, ou só quem lê literatura, se torna capaz de discutir, ou de ter um pensamento elevado, ou de desenvolver uma capacidade crítica em relação ao mundo. Em várias outras coisas, você pode obter essa mesma capacitação. A literatura deve ser tratada principalmente como diversão. Há uma excessiva colocação da figura do escritor como um “alguém” que está em certo patamar porque, na literatura, existiria um esforço intelectual muito grande. Pode até existir, mas existe também um esforço intelectual para se erguer esta construção, aqui (o Teatro Paiol). Tudo que o homem faz exige inteligência, esforço, capacidade, talento. E acho que, às vezes, essa colocação da “importância da literatura” afasta um pouco o leitor que quer, pura e simplesmente, ter um momento de prazer: abrir um livro, ler uma história, sorrir, ficar triste, pensar.

A graça de Kafka
Cada livro, no seu fundamento, na sua característica, vai despertar no leitor um tipo diferente de efeito. E um mesmo livro pode despertar, em leitores diferentes, sensações diferentes. Eu, por exemplo, acho O processo, de Kafka, um livro engraçadíssimo. Acho Kafka um escritor engraçadíssimo. Engraçado é que fiz a experiência de entregar um exemplar de O processo para o meu filho, quando ele tinha 15 anos, e ele também achou aquilo muito engraçado. Mas já ouvi gente dizendo que esse é um livro que nos aterroriza, porque destrói nossas bases. Não levo as coisas muito a sério. Sou uma pessoa séria, em geral, mas não dou essa grandeza excessiva às coisas. Acho que as coisas são simples.

Camões decorado
Meu pai e meu avô paterno tinham muitos livros em casa. Meu pai era juiz, desembargador, mas sempre gostou muito de literatura. Ele possuía uma coleção imensa de livros de direito e filosofia, livros que eu não tinha muita vontade de ler, mas que, eventualmente, lia. Meu pai também tinha muitos livros de literatura. E de literatura clássica. Muita poesia — comecei como leitor de poesia. Teve uma época em que eu sabia trechos de Os lusíadas de cor. E sonetos de Camões, de Castro Alves, de Gonçalves Dias. Isso aos dez, onze anos.

Garagem cheia
Os livros, em geral, ficavam espalhados pela nossa casa. Como sou um pouco mais velho que meu segundo irmão — temos seis anos de diferença —, fui o primeiro a sair do quarto comum. Minha casa tinha dois andares, toda a família dormia em cima e eu, embaixo. Esse meu quarto era também um lugar onde meu pai armazenava livros. Ali, lembro de algumas coleções muito interessantes, de mitologia, e essa proximidade talvez tenha influenciado meu gosto, ou as próprias características da minha escrita. Em minha casa, só não havia livros na sala de visitas. A gente tinha uma garagem fechada, onde cabia pelo menos um carro. Mas nessa garagem, por exemplo, sempre houve livros. Nunca teve carro lá dentro. A gente deixava o carro na rua, e, na garagem, os livros. Então, a convivência com a leitura, para mim, foi tão natural quanto jogar bola na rua. Já minha mãe gostava de livros policiais, de Agatha Christie, que eu também lia. Então, eu sempre li. Não era nem um hábito, era um prazer.

Da miopia ao livro
Muito mais tarde, fui fazer uns exames. Tenho dez graus de miopia, e a oftalmologista me perguntou quando eu havia começado a usar óculos. Comecei relativamente tarde, quando já tinha quatro graus. E ela me disse: “Você deve ter sido uma criança que gostava de ler, de ficar em casa, e que gostava de objetos pequenos”. Aí, eu me surpreendi: “É verdade, como é que você sabe?”. E ela: “É que você deve ter sido míope desde os sete anos, oito anos e, para um míope, é pior olhar as coisas em profundidade”. Então, nunca fui um bom jogador de futebol. Por isso, acabei escrevendo. Mas nunca tinha ouvido uma análise assim, dizendo que a miopia leva você ao livro, a um objeto que você vê num tamanho maior.

Luís Henrique Pellanda e Alberto Mussa. Foto: Matheus Dias

Minha biblioteca
Entrei na faculdade com 23 anos. Já era minha segunda tentativa de curso superior. Nesse período, comecei efetivamente a montar uma biblioteca que tivesse um perfil meu. E qual era esse perfil? Eu queria conhecer literatura e muita coisa de história e antropologia. Mitologia, principalmente. Mas, como você dificilmente encontra coleções específicas de mitologia, tem que comprar livros de antropologia. Sempre colecionei livros nessas três áreas — e mais na área de literatura, por causa de afinidade mesmo. (…) Eu tinha a obsessão de ter livros de todos os lugares do mundo. Eu queria conhecer os escritores da Coréia, da Tailândia, do Afeganistão. E tive a sorte, por uma série de circunstâncias, de conhecer a literatura africana. Então, colecionei muitos livros de literatura africana e, numa época da minha vida, pensei em ser professor de literatura africana na UFRJ — quando os professores diziam que esse departamento seria aberto por lá. Mas a vida me levou para outros rumos, e acabei não entrando na universidade. Nunca fui professor.

Toda a literatura do mundo
Naquela época, não havia internet, não havia nada. Você tinha que ir às livrarias. E, no Centro do Rio, tem uma importadora, a livraria Leonardo da Vinci, aonde eu ia sempre. Lá, eu consultava os catálogos, escolhia os títulos, mandava comprar os livros. Às vezes, por causa das variações cambiais, aquele era um problema sério. Tinha que haver todo um planejamento. Se um livro demorasse muito a chegar, o dólar poderia ficar mais caro e, depois, você não conseguiria pagá-lo. Mas minha intenção era ter tudo. Ter um conhecimento de toda a literatura do mundo. Pelo menos, um pouco de cada uma. Ter um livro de cada lugar. Um livro de cada escritor importante de cada país. E, assim, minha biblioteca foi crescendo.

Exatas
Eu era um aluno ruim, sempre fui. E descobri de repente, no segundo grau, que eu tinha uma habilidade para a matemática. Isso perto do vestibular. Nunca fui um aluno brilhante. Fiquei em recuperação em português, em redação. E, de repente, descobri a matemática, no momento de escolher uma carreira. Eu jamais seguiria a carreira do meu pai, tinha uma rejeição total àquilo. E também era o período da ditadura militar, o final dela. Tive uma formação muito conservadora. Apesar de ter vivido experiências que me mostraram outros universos, minha criação foi bastante severa. Então, acabei optando pelo que era moda na época: uma carreira na área de ciências exatas.

Cerebral
Eu não gostava de nada prático. Não gostava de física, porque era uma coisa real. Engenharia, nem pensar. E entrei em matemática. (…) Mas acabei não me identificando com aquilo, só gostava da matemática abstrata. Desisti do curso em si e fui tentar a carreira como músico. Quatro anos depois, voltei à universidade, mais maduro, e decidi que queria estudar literatura. Mas essas coisas sempre marcam. Minha literatura é mesmo uma literatura artificial, muito cerebral. Não que ela tenha um nível de aplicação ou de complexidade maior que outras. Não é isso. Mas não escrevo sobre minhas experiências de vida. Não consigo me ver escrevendo sobre a minha infância — que foi muito rica, tanto em coisas ruins quanto em coisas positivas. Passei por experiências que poucas pessoas com a minha origem conhecem. Vivi na favela, cheguei a morar no morro quase um ano, aos 18, com uma mulher de 27. Freqüentei escola de samba, e freqüento até hoje. Tocava atabaque em terreiro de umbanda. Fui capoeirista e ensinei capoeira para o meu irmão, que hoje é professor de educação física. Uma capoeira de rua, que não tinha aquecimento, não tinha ginástica, nada disso. Era capoeira pura. Mas não consigo escrever sobre isso. Não consigo trazer, para os livros, as minhas experiências pessoais. Então, procuro escrever a partir de um problema qualquer. É meu processo de criação. Encontro algum problema literário, alguma história que li, algum romance que me inspira, e digo: “Puxa, eu poderia dar a isso um tratamento x”. Também tenho que planejar o livro inteiro. Não começo um livro sem saber exatamente o que vou dizer. Quero sempre dizer alguma coisa. E sei como vou acabá-lo. É claro que, no processo de escrita, posso mudar alguma coisa, mas, antes de começar a escrever, passo muito tempo planejando. Faço desenhos. Dependendo do local onde a história vai se passar, faço um mapinha. Localizo aquilo. Penso nos capítulos. Se eu começar a escrever e perceber que estou deixando cada seção do livro com três páginas, aquilo passará a ser uma regra para mim. E não poderei fazer uma seção com cinco páginas. Para não quebrar o ritmo, o paralelismo.

Diversidade literária
Trabalho a questão da ficção muito racionalmente. Gosto muito de transformar uma história em outra. De pegar uma história e dizer: “Posso transformar isso em outra coisa”. Gosto de mudar a reação da personagem x, por exemplo, e imaginar o que aquilo pode me instigar a pensar. A construção de O movimento pendular é baseada nesse princípio. São histórias de adultério. É tudo brincadeira, não tem nada formal, é realmente uma brincadeira de caráter lógico. Qual a idéia? Pegar uma história que pudesse ser considerada a primeira história de adultério da humanidade, e mostrar que todas as histórias de adultério que aconteceram depois daquela são transformações da primeira. Se, na primeira história, o marido chegou e matou a esposa, em outra, ele a pegou de volta. Ou resolveu matar o amante. Aí, você pode criar todo um jogo lógico de transformação de uma história em outra. Isso é muito interessante, porque você consegue descobrir histórias muito diferentes, que não são naturais, mas que são literárias. E a literatura ultrapassa muito a realidade. Ela tem o poder de ultrapassá-la. Você pode conceber mundos totalmente diferentes, principalmente se utilizar o elemento fantástico. Que é uma coisa que a literatura brasileira não tem o hábito de fazer. A literatura brasileira tem o vício do realismo. Não que eu seja contra. Admiro uma série de livros realistas. Mas, num conjunto literário onde você observa que todos trabalham com o mesmo princípio, isso é um problema. Hoje, a gente fala muito hoje em ecossistema, em preservar a natureza. E, para se manter a vida no planeta, falamos em diversidade biológica. Mas, na cultura, as pessoas não pensam assim. Elas tendem a formar padrões, seguir um mesmo estilo, um mesmo princípio, escolas de literatura, uma geração literária. Acho essas coisas empobrecedoras. O que é uma geração? Ela não se define apenas por sua data de nascimento, mas por uma comunhão de processos e interesses. Isso é ruim. O ideal é que cada escritor tenha um processo diferente, e que ofereçamos ao público a diversidade literária, cultural. Procuro fazer isso. Gosto de explorar temas que sinto não estarem muito presentes na literatura brasileira. Então, sempre parto de um estímulo intelectual externo a mim e à minha vida.

Coisa perigosa
No período da faculdade, nunca pensei em ser escritor. Meu objetivo era, justamente, ser professor. (…) Na época, eu trabalhava no dicionário do professor Houaiss. Eu escrevia a letra D. Era especialista em letra D. E o que aconteceu? Veio o Plano Collor, e os patrocinadores retiraram seu dinheiro do dicionário. Houve uma interrupção no trabalho, e fiquei sem emprego. Na época, eu tinha um filho de um ano, e a mãe dele, minha ex-mulher, trabalhava no mesmo lugar. Então, ficamos desempregados ao mesmo tempo. Tive que arrumar outras coisas para fazer. Minha mãe também me ajudou bastante. E acabei tomando outro rumo, me afastei completamente do ambiente acadêmico. Uns cinco anos depois, porém, aquilo tudo começou a me fazer uma falta imensa: a convivência com amigos, as conversas sobre livros, sobre literatura, sobre escritores. Eu nunca tinha tentado escrever prosa, sempre tentava escrever poesia. Mas tentei fazer um conto, e achei que gostei dele. Insisti, dei sorte e enviei um livro pronto para o Antônio Houaiss. Ele gostou, mas disse: “Você está fazendo uma coisa muito perigosa, está indo na contramão de tudo que existe hoje. Tem certeza de que quer publicar este livro assim?”. Ele tinha medo de que meu livro fosse criticado porque não fazia parte do seu tempo. E falei: “O que escrevi foi isso”. O Houaiss, então, fez uma apresentação para ele e consegui publicá-lo. Entrei na literatura dessa maneira, com o Elegbara, em 1997. O livro não teve repercussão nenhuma. Foi uma edição paga, da Revan. Depois, ele foi publicado de novo pela Record.

Alberto Mussa. Foto: Matheus Dias

Bioy, lindo e racional
Quando comecei, eu não conhecia o Borges. E as pessoas associam muito os meus livros a ele. Mas eu havia lido A invenção de Morel, de Bioy Casares, e dito: “Poxa, se eu quiser escrever um dia, se eu tiver que escrever e conseguir escrever, tenho que escrever esse tipo de literatura”. É um livro lindo, mas construído muito racionalmente. Uma literatura muito racional. Quando comecei a ler Bioy, me apaixonei e, naturalmente, cheguei ao Borges. Mas, aí, eu já tinha escrito o Elegbara praticamente todo.

O português que conheço
Eu era um acadêmico, me preparei para ser professor. Escrevia ensaios de literatura, textos teóricos, crítica. Comecei a fazer ficção, mas acho que, à minha ficção, trouxe um pouco dessa forma de me expressar. E lembro também de uma coisa muito interessante. Na minha época, na faculdade de letras, para você se tornar um escritor, tinha que fazer alguma coisa parecida com Guimarães Rosa. Se você não subvertesse a linguagem, não poderia ser considerado um artista da palavra. Você tinha que criar um universo, uma linguagem diferente. E eu não tinha a menor pretensão de fazer isso. Meu português era o português culto, universitário. Sei escrever nele, não sei fazer outra coisa. Mas havia essa pressão. Nas oficinas de literatura, você era praticamente obrigado a tentar criar uma linguagem diferente. Cito Guimarães Rosa porque ele era a grande referência. Mas perdi o encanto com aquilo, porque via que a história em si perdia o valor. Era como se ela não importasse. Você tinha que criar a sua linguagem. Não concordo com isso. Você pode até criar uma linguagem. Mas Guimarães Rosa, em alguns livros, errou a mão demais. Ficou linguagem demais e história de menos. Não gosto de seus últimos livros. Mas há um ponto de equilíbrio, em que ele tem uma criação vocabular de imagens metafóricas fascinantes, e tem também a base, a história que está contando. Sem essa boa história, não há literatura para mim. Com uma ficção feita só de palavras, uma coisa qualquer em que o fundamento seja uma linguagem diferente, sem uma história boa por trás, não consigo me identificar. Mas aquela era uma época estranha, havia a semiótica. A teoria literária tinha umas coisas assim, tudo era o signo, a significância. Tinha um monte de teóricos, a teoria da recepção. Você estudava umas coisas muito complicadas. De certa forma, isso me afastou um pouco da vontade de estudar literatura teoricamente. Mas eu vinha daquela formação. Quando descobri Bioy foi uma abertura, uma libertação. Pude dar vazão à minha forma de escrever. E não poderia ser diferente. Então, Bioy me libertou daquele peso de ter que criar uma linguagem. Não, vou escrever no português que conheço, no português que aprendi.

Auto-referente
A gente vive um momento em que a grande maioria dos escritores procura representar uma realidade social. E acho que essa pesquisa (da professora Regina Dalcastagnè, da UnB, sobre o perfil dos personagens dos romances brasileiros contemporâneos, em sua maioria, brancos e de classe média) tem muita coisa interessante. Primeiro, as pessoas começam a escrever muito cedo hoje em dia. Os autores publicam desde os 20 anos. Isso não quer dizer nada, você pode fazer um livro maravilhoso aos 20. Mas será um livro baseado em sua experiência pessoal. Porque, com essa idade, você não tem uma carga de leitura que lhe permita um conhecimento mais amplo da literatura. A literatura, para mim, é uma instituição. Ela tem uma história. Não basta você ter a inspiração. Você pode ter o talento, mas precisa ter o fundamento. E você só aprende a escrever lendo. Você pode acertar num livro? Pode. Mas é o caso mais raro. Você pode acertar num primeiro livro baseado em experiências pessoais, numa história de sua vida, em algo que você conheceu. Quando você faz isso, você utiliza a sua referência. Mas, para escrever um romance fora do seu tempo, ou num país que não é o seu, você precisa estudar. Se você é curitibano e vai fazer um romance ambientado na Curitiba de 2010, você conhece tudo. Você não precisa se preocupar com a roupa dos personagens. É a roupa do dia-a-dia. Você conhece os ônibus, os tipos de carro, as bebidas, as comidas, o hábito das pessoas. Você faz um livro que é uma tradução do seu tempo, porque ele é auto-referente. O realismo é auto-referente. Desde o século 19. Ele fala de si mesmo, e dos problemas do seu tempo. As pessoas estão no seu tempo, preocupadas com o que ocorre nele, e representam esse tempo. Isso é uma estatística. Qual é o perfil do escritor brasileiro? Branco, universitário, jornalista, professor de literatura, morador de um grande centro, a capital do seu estado. É o escritor brasileiro de hoje. É difícil fugir disso, estatisticamente. A literatura é auto-referente por definição.

Cansativo
Escuto muitas vezes esta frase: “O escritor reflete o seu tempo”. Eu não reflito o meu tempo. Não tenho a menor preocupação com o meu tempo. Pelo contrário. A oportunidade que a literatura me dá é a de viajar por experiências que nunca vou ter. O século 19, o século 18, a pré-história, a Idade Média, outros países, mundos imaginários, situações que não existem na realidade, leis físicas não vigentes. A literatura possibilita uma viagem a um universo em que você não vive. É o grande momento de viver uma experiência que não é a sua experiência cotidiana. E, claro, há bons livros auto-referentes do tempo contemporâneo, mas, quando uma literatura inteira tem esse projeto, e isso tem acontecido no Brasil, o resultado é esse daí. Acho cansativo. Gosto justamente da diversidade. De experimentar coisas novas. Se posso imaginar o século 19, por que não fazê-lo? É uma experiência única. Nós não vamos viver o século 19, estamos no 21. Mas na literatura, podemos fazer isso. Não só lendo os autores que escreveram sobre ele, mas também viajando na ficção. E essa é a grandeza da literatura: a possibilidade de viver a experiência de um outro. Raciocinar como um outro, sentir como um outro. Sentir vivendo um outro tempo, um outro momento da história da humanidade. Você ganha uma sensação de humanidade maior. Você passa a ter uma experiência maior sobre o homem no seu sentido amplo. Não sobre o homem localizado historicamente numa experiência específica, mas o homem em geral. A literatura é uma das poucas disciplinas, uma das poucas atividades em que você pode desenvolver isso da forma mais livre possível.

Macunaíma e o racismo
Nunca gostei de Macunaíma. Até porque, na época em que o li, jovem, era um livro que agredia, e ainda agride, a religião que eu praticava. Eu tocava atabaque em terreiro de umbanda. Meu pai era adepto de filosofias alternativas, não tinha uma religião específica. Minha mãe e minhas tias freqüentavam alguns terreiros de umbanda. Mas era assim: iam lá para ver como estava alguma situação e logo voltavam à igreja. Eu fui mais fundo, fiquei lá e tive uma experiência intensa nesse ambiente. E a descrição que o Mário de Andrade faz dele é profundamente preconceituosa. É tão agressiva que, quando se tem uma vinculação emocional com aquele fenômeno, você se sente agredido. Mas independentemente disso, não é só por esse motivo. Vamos analisar todos os estereótipos que existiam no país antes de Macunaíma e do modernismo em geral. Qual o principal estereótipo dos índios no Brasil? O índio é preguiçoso — isso desde a literatura colonial —, é sensual, é dado ao sexo sem limites, não tem respeito por nada, é traiçoeiro. Antes do modernismo, ser preguiçoso era um valor negativo, ser sexualmente livre era negativo, não era bom ser traiçoeiro e não ter palavra. Com o negro, é a mesma coisa. O negro era o quê? Sujo, feio, supersticioso. Cheirava mal, era violento, estuprador. Esses personagens estão em todo o nosso romance, desde a literatura colonial. Estão em todas as cartas e sermões de padres. Quando chegamos ao modernismo, esses estereótipos permanecem. A diferença é que eles passaram a ser vistos com tolerância. E o que é o Macunaíma? Ele também é preguiçoso, libidinoso, sem caráter, traiçoeiro. O negro, no livro, também é feio e asqueroso, desperta repugnância. São os mesmos estereótipos. Só que, em vez de se usar a palavra agressiva que se usava no passado, passou-se a usar uma linguagem abrandada, camarada. Diminuiu-se a intensidade, mas se manteve o mesmo fundamento. Esse é um problema da literatura, não da brasileira, mas de uma grande quantidade de livros e de grandes autores.

Monteiro Lobato imprestável
Em 99,9% dos romances brasileiros, você só chama de negro quem é negro. A quem você não dá a cor, presume-se que é branco. Por quê? Porque você escreve pensando como branco e, o que é mais grave, escreve para um público branco. As pessoas que fizeram a literatura brasileira do século 20 não imaginavam que sua obra pudesse ser lida por negros. Não imaginavam que os negros iriam à escola um dia, que seriam universitários, que seriam intelectuais. Escrevi um artigo sobre Monteiro Lobato que me causou um problema tremendo, porque eu disse que sua obra era completamente imprestável, apesar de ser genial. Tenho um grande amigo que é negro, e sua filha negra estuda numa escola onde pegaram para ler o Monteiro Lobato. E, ali, ela leu que a negra é beiçuda e burra. A Tia Anastácia é caracterizada assim. Aí, me responderam ao artigo dizendo que aquilo era um absurdo, porque, para compreender um livro, eu tinha que contextualizá-lo historicamente. Aí, eu pergunto: você vai contextualizar historicamente um livro para uma criança negra de sete anos, que estuda numa escola de padrão alto onde todos os seus colegas são brancos? Vai pegar um livro que diz que a negra é burra, feia e fedorenta — que é como a Emília se refere à Tia Anastácia — e vai querer contextualizar isso historicamente? Esse livro é imprestável para ser usado numa sala de aula. Ele reforça esses estereótipos. Esse é um problema que trai o nosso racismo. Pegue os grandes autores: José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa. Os melhores. Você vai ver, neles, esse procedimento. É o personagem Fulano, o Sicrano e, na hora em que aparece o preto, é “o preto”. O preto Alguém. E, dali a pouco, esquece-se o nome do personagem e ele passa a ser só “o preto”, ou “o mulato”. Não é possível. A gente tem que encontrar outra forma de tratar disso.

Alberto Mussa. Foto: Matheus Dias

Coisa de brancos
Nos meus livros, nunca digo que um personagem é negro. Nunca digo, o leitor vai ter que descobrir. Vou dar indicações. Se falo que ele é um escravo, e estou falando do período da escravidão, você pode deduzir isso mais facilmente. Mas, no livro que estou escrevendo agora, tenho essa dificuldade. Ele não se passa no período da escravidão. Se passa em 1910, 1920. É um exercício interessantíssimo mostrar ao leitor que um personagem é negro sem dizer que é negro. É um desafio, é difícil. Antigamente, em lingüística, isso era chamado de “elemento marcado”. O elemento marcado era aquele que você “tinha que dizer”. Quando você não diz alguma coisa, presume-se outra. Então, a literatura presume-se uma coisa de brancos. Escritores brancos e leitores brancos. Quando aparece um elemento negro, ele tem que ser marcado.

O povo brasileiro
Nossas origens são indígenas, e são cientificamente comprovadas. Antes, já existia uma comprovação histórica disso. Se você ler os textos coloniais do século 16, todos se referem aos problemas da inquisição ao tolerar os casamentos, uniões que não eram nem formais nem santificadas pela igreja, entre os portugueses e as índias dos aldeamentos, das reduções. Os próprios documentos históricos referem que, do primeiro milhão de brasileiros — num cálculo que o Darcy Ribeiro fez, no livro O povo brasileiro —, certamente 90% eram oriundos desse primeiro contato, em que não havia mulheres brancas. Eram pouquíssimas. Então, a população brasileira cresceu na base da relação não necessariamente amorosa entre portugueses e índias.

A língua geral
O Marquês de Pombal proibiu o uso do tupi no Brasil. Domingos Jorge Velho, que destruiu Palmares, não falava português. Falava a língua geral. A toponímia do Brasil mostra isso. Há nomes tupi em todo Brasil. Rios, lagos, cachoeiras, cidades. Em lugares onde os índios tupi nunca viveram. Isso acontecia porque quem batizava esses lugares eram os bandeirantes, que não falavam português. Mas as pessoas, em geral, não reconhecem isso. Dizem: “O Brasil é um país mestiço, é verdade, mas eu não sou. A minha mãe era portuguesa, ou italiana. Eu tenho um passaporte da comunidade européia”. Hoje em dia, há essa moda. As pessoas não reconhecem uma coisa óbvia e cientificamente demonstrada: o aspecto físico não diz nada sobre você depois de duas, três, quatro gerações. Eu fiz um exame de DNA e descobri que tenho antepassados indígenas. E não tenho a menor cara de índio. Apesar de gostar de andar sem camisa. Mas tenho comprovadamente, no meu genoma, algum gene que veio de uma linhagem indígena. E é assim com praticamente todos os brasileiros, exceto aqueles cujos pais são imigrantes recentes.

Tupi é o quê?
As pessoas não têm interesse em conhecer a história brasileira. Veja a literatura dos Estados Unidos, por exemplo, que é o país modelo para quase tudo, hoje em dia. Há todos os tipos de livro. Os contemporâneos, os históricos, os fantásticos, os policiais. E, quando você vê o tratamento que os escritores dão à história americana, vê que eles têm conhecimento. Há gêneros fascinantes. O faroeste, por exemplo, é um gênero maravilhoso, criado lá. E os autores de faroeste, e principalmente os grandes escritores que abordaram o gênero, têm um conhecimento profundo daquela história. Quando falam dos índios, falam com conhecimento de causa. Conhecem os seus rituais, sabem distinguir os grupos. E nós não temos nem a noção de que tipos de índios vivem no Brasil. Falamos a palavra “tupi”. Mas tupi é o quê? Faz o quê? Qual é a diferença do tupi para o tapuia, para o ianomâmi? E você vê coisas absurdas. Gente colocando palavras tupi na boca de índios que não falam tupi. No Brasil, são faladas quase 200 línguas indígenas. Então, falta uma identificação do brasileiro com a história de seu país. E o reconhecimento de que, na verdade, nossa história territorial não começa em 1500. Ela já vinha de antes. Na França, antes da chegada dos romanos, você tinha os gauleses. Em Portugal, você tinha os iberos. Fernando Pessoa, em Mensagem, fala do herói antigo, anterior aos romanos. Ele não acha que Portugal começou com a invasão romana. Esse sentimento, no Brasil, não existe. E existe em todo lugar do mundo. Só não existe aqui.

Grandes momentos
Algo que me causou um impacto muito grande, e que me levou a escrever O enigma de Qaf, foi a leitura da poesia árabe pré-islâmica. Sempre li muita poesia. Leio até hoje, talvez menos, mas nunca a abandonei. Foi a minha formação. Mas, dessa poesia árabe, eu não tinha noção nenhuma. Apesar de ter antepassados libaneses, nunca aprendi árabe em casa. Cresci como um brasileiro comum. Muito tarde, li uma tradução desses poemas, e vi que aquela era uma poesia totalmente tribal. Normalmente, no Egito ou na China, por exemplo, o tratamento da poesia era sempre o da cidade, o de pessoas que viveram num mundo civilizado, onde havia um estado, leis, crime e justiça. Mas aquele era o único caso de poesia antiga e clássica de uma sociedade de pastores nômades que não tinham leis. Existia um código de ética, mas a lei era a lei da vingança. O que você fez comigo, farei com um parente seu. E está tudo ali. Foi um dos últimos grandes momentos em que a literatura mudou minha forma de viver o mundo.

Edição: Luís Henrique Pellanda

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

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