No Chile

Pedi ao romancista Enrique Lafourcade que contasse a curiosíssima estória de Juan Ramón Jiménez
O poeta espanhol Juan Ramón Jiménez
01/03/2013

07.04.1992
Santiago do Chile. Depois do taller literário na Plaza Mulato Gil, pedi para o romancista Enrique Lafourcade contar aquela curiosíssima estória de Juan Ramón Jiménez e Georgina de tal, que ele me contou em nosso encontro em Israel nos anos 1980. É a estória dos dois rapazes peruanos que enviaram ao famosíssimo poeta Juan Ramón cartas, mas não tiveram respostas. Pediram, então, a uma prima chamada Georgina que lhes dessem uma ajuda, escrevendo ao poeta espanhol uma carta de leitora apaixonada. Começa uma correspondência entre Juan Ramón e Georgina. Ramón vai se interessando e, enfim, quis conhecê-la. Nesta altura, os dois jovens é que imitavam a letra dela e iam alimentando a paixão. Clímax da estória: Juan (como Don Juan) resolve ir ao Peru (Lima) visitar Georgina. Os dois rapazes se assustam, se desesperaram.

— Vamos matá-la.

E pedem ao cônsul da Espanha (que um deles conhecia) que avisasse a Juan Ramón que não viesse, pois Georgina havia morrido. Juan Ramón recebe a notícia e, pesaroso, escreve um poema: “Morreu esta tarde em Lima, Georgina…”.

Neruda soube da história. Como Juan Ramón não gostava de sua poesia e havia dito sobre ele “É um grande mau poeta”, Neruda resolveu zombar dele telefonando altas horas da noite e dizendo: “Aqui é Georgina”.

07.04.1992
Santiago do Chile. Fui com Arturo Navarro à casa de Antonio Skármeta. Ele não estava, viajara com dez outros escritores a Paris para o festival Belles Étrangères (que já contemplou o Brasil em 1988, se bem me lembro). Todos ali na casa de Skármeta conheciam os brasileiros que se exilaram: Artur da Távola, pseudônimo de Paulo Alberto Monteiro de Barros; dizem que marcou época com seu programa Preto no branco na TV da universidade católica (não sabem que era cópia de um programa brasileiro, mas confessam que sua televisão era muito atrasada). Falam também de Paulo Freire, José Maria Rabelo, Gabeira, Luís Felipe Ribeiro (meu aluno, foi professor de Arturo na Católica).

Fomos à casa do Skármeta para ver o programa que ele fez e que estreava: El show de los libros. Skármeta, poeta, gordo, careca, simpático, fazia uma boa apresentação. Os amigos, sua linda mulher de origem alemã, Nora (que ele conheceu o exílio), assistindo à transmissão com o filho no colo.

O programa é original. Não é nenhum Apostrophes do Bernard Pivot, mas é inventivo. E o tema era o amor. Leitura ilustrada de poemas sobre o amor, entrevista com Nicanor Parra, engraçadíssimo, falando bem seus poemas.

21.03.1994
Jantar na casa de Maria Teresa, amiga de Lígia Marina e Denira Rosário. Antônio Houaiss, agora cidadão comum, sem ministério. Ênio Silveira, fabuloso contador de estórias. Há anos que lhe cobro uma autobiografia, desde quando o ouvi contar coisas num jantar em sua casa.

Contou: preso em 1964, não podia ler nem fazer nada. Ficava à toa. Então, deitado, resolveu ouvir de memória o segundo movimento de uma sinfonia de Brahms. Ouvia e sorria com a música. O sargento passa e pergunta:

— De que o senhor está rindo?

— Não estou rindo, estou ouvindo o segundo movimento da sinfonia tal de Brahms.

— Como? Se eu não estou ouvindo nada?

— O senhor não está ouvindo, mas eu estou.

Contou que Hemingway (que ele editava) lhe telefonou um dia, dizendo que queria caçar búfalos selvagens na Ilha de Marajó.

— Búfalos selvagens! Não sei se ainda há. Posso me informar.

Ênio disse-lhe que talvez houvesse apenas búfalos que se desgarravam das manadas durante as cheias…

A conversa ficou por aí e Hemingway pouco depois de matou.
Caçou-se a si mesmo, pensei.

22.04.1994
Bogotá. Julgamento do Prêmio Pégaso de Literatura, patrocínio da Mobil Oil. A procura de restaurantes para os jurados feita num carro histórico: a Mobil Oil comprou o veículo que teria sido de Somoza, porque era blindado. O ditador nicaraguense o havia encomendado para se proteger.

Não teve jeito. Mataram-no quando ele foi ao Paraguai, duas semanas antes de receber a viatura. Muito estranho estar nesse carro.

Gregory Rabassa (no júri), lembrando o tempo em que passou no Brasil, conta duas anedotas correntes entre nós no tempo de Costa e Silva: quando presidente, Costa e Silva, que não era considerado exatamente uma águia, foi aos EUA. Quando o avião atingiu a altitude de cruzeiro, o piloto informou:

— Estamos a dez mil metros de altitude!

Costa e Silva, surpreso, exclamou:

— Sabia que o Brasil era grande, mas não tão alto!

Outra piada:

— Qual a diferença entre um trem e o Brasil?

— O trem anda pra frente e apita, o Brasil de Costa e Silva.

26.04.1994
São Francisco. De manhã, fomos — João Almino (cônsul) e Emanuel Brasil — visitar Ferlinghetti na sua livraria, a City Lights. Em seus 75 anos, rijo e forte, com um brinco numa das orelhas, recebeu-nos abrindo a livraria. Autografou para mim o livro sobre Fernando Pessoa como anarquista em Paris nos anos 1920. Conta o poeta beatnik que deram seu nome a uma rua em São Francisco e fizeram uma festa na inauguração com sua presença.

Conversamos sobre Evtuchenko (que conheci no Rio) a propósito de um pôster daquele poeta no seu escritório. Falei-lhe de Mark Strand, poeta e tradutor de Drummond, mas não se interessou. Mostrou-me um convite para ir a Belo Horizonte no festival organizado por José Maria Cançado. Aconselho-o a ir e sugiro que faça uma leitura de poemas na Biblioteca Nacional.

Me passou um texto revolucionário do subcomandante Marcos (zapatista) que circula clandestinamente. É messiânico, juvenil e fala de “sacrifício” e “pátria”.

Ah, sim, acha que Allen Ginsberg deveria ganhar o Nobel.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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