No lixão que nos rodeia

Conto inédito de Sérgio Rodrigues em homenagem a Rubem Fonseca
Ilustração: Bruno Schier
27/06/2020

“Você comeria o seu pai?”
“Em churrasco ou ensopadinho, não. Mas em forma de biscoito, como foi mostrado naquele filme, eu não teria a menor repugnância em devorar o meu pai.”
Rubem Fonseca, Intestino grosso

Os quatro entraram na caminhonete: Nonato dirigindo, Vilhena no banco do carona, o bandido atrás, algemado, ao lado do Wellerson.

— Doutor, tem certeza que isso não vai dar merda?

— Sossega, Nonato, tá encagaçado?

— Não é isso, é só que…

— O secretário anda arisco, doutor ­— disse o Wellerson, auxiliando o Nonato. — Será que esse puto vale a bala que o senhor vai gastar com ele?

— Isso a gente vai ver.

O cara, quieto.

Quando chegaram ao lixão, o Vilhena disse ao Nonato:

— Para.

Desceram. O Wellerson acendeu sua lanterna, um facho de luz azulada na escuridão. Nonato puxou o lenço do bolso de trás e cobriu o nariz.

— Que fedor!

Vilhena só prendeu a respiração, expirando devagar pela boca. Puxou a pistola automática do coldre sob o paletó e a apontou para a cabeça do homem.

— De joelhos.

O cara se ajoelhou, sem tirar os olhos dos olhos do Vilhena.

— Qual é o nome dela? — perguntou o comissário.

O outro sorriu e disse:

— Vocês estão me devendo casa, comida, sapato, dente.

Com uma coronhada firme, Vilhena quebrou seus incisivos.

— Bota mais dois dentes na conta.

O Wellerson deu uma risada.

— Você matou o playboy e a mulher grávida dele, seu filho da puta — prosseguiu Vilhena. — Decapitou o cara e deu um tiro na barriga dela, seu degenerado. Por quê?

O Nonato falou:

— Doutor, era bom a gente resolver isso logo.

— Foi sua namoradinha bacanuda que mandou você fazer isso, não foi? Foi aquela vadia que eu sei. Foi ela que te aliciou pro comunismo. Qual é o nome da cadelinha de bandido da sua namorada? Qual o nome da organização?

Vilhena gritava tão alto que o Nonato se assustou:

— Doutor…

De joelhos, cacos de dente e baba vermelha escorrendo pelo queixo, o Cobrador ergueu a cabeça e cuspiu na direção do Vilhena. A gosma pesada de sangue tombou logo, sujando só os sapatos do comissário.

Vilhena nem notou. Olhos injetados, o cano da pistola colado na testa do homem de joelhos, urubus voejando em volta, gritava:

— E de onde veio o dinheiro pra contratar aquele advogado, porra? Puta que me pariu! Um cara que não tem onde cair morto de repente me aparece com um advogado cheio de marra, com nome de mágico de gibi e outras sacanagens. Será que esconde cobra aquele lá, Wellerson?

Não esperou o subordinado responder.

— Como você explica uma coisa dessas, hein? Pensa que eu sou otário? E quem é esse tal de Zé, que fica aparecendo em todas as histórias? O cérebro da porra toda? Conta tudo ou eu te mato agora, seu arrombado do caralho!

O Cobrador sorriu seu sorriso vermelho.

— Vocês me devem remédio, relógio, carro, celular, buceta, livro…

Vilhena puxou o gatilho. Sangue e miolos saíram voando, o homem tombou para trás.

Deixaram o corpo para os urubus.

No caminho de volta, todos em silêncio, os outros dois olhavam para o Vilhena com mais respeito do que nunca. Até que o Wellerson falou:

— Comissário, o senhor não consideraria, quem sabe, entrar de sócio da gente num negócio aí de gatonet?

Sérgio Rodrigues

É escritor, jornalista e roteirista. Mineiro que adotou o Rio, lançou, entre outros, o livro de contos A visita de João Gilberto aos Novos Baianos e os romances O drible (vencedor do prêmio Portugal Telecom, atual Oceanos) e Elza, a garota, além do almanaque Viva a língua brasileira! — todos publicados pela Companhia das Letras. Tem livros editados na França, na Espanha, em Portugal e nos EUA. Mantém uma coluna semanal sobre língua e linguagem na Folha de S. Paulo e é roteirista do programa de TV Conversa com Bial.

Rascunho