Rubem Fonseca, autor-resumo do Brasil contemporâneo

Autor renovou o conto contemporâneo ao apresentar uma nova filosofia de vida e introduzir uma tradição cinematográfica em suas narrativas
Ilustração: Rubem Fonseca por Fabio Abreu
27/06/2020

A trajetória literária de José Rubem Fonseca (1925-2020) teve início em meio a uma carreira executiva de sucesso. Depois de experiências na polícia, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, e de estudar administração de empresa em Nova York, ele se tornou um alto funcionário da Light, empresa privada de energia elétrica, fundada em 1905, no Rio de Janeiro, cidade adotada pelo autor. Foi justamente no decorrer desta ascensão profissional que publicou sua primeira coletânea de contos: Os prisioneiros, veiculada por uma editora quase invisível (GRD, 1963).

A obra teria passado completamente despercebida se um crítico atento, o mais importante da nossa história, Wilson Martins (1921-2010), não tivesse notado a sua qualidade em um artigo de O Estado de S. Paulo de 1º de fevereiro de 1964 (Tendências). Para o crítico, aquele estreante quase quarentão, ligado a outros ramos da esfera pública, trazia a literatura no sangue e renovava o conto contemporâneo ao apresentar uma nova filosofia de vida e introduzir uma tradição cinematográfica em suas narrativas.

Foi exatamente este programa que o ficcionista cumpriu ao longo de uma produção extensa e exitosa. Em duas dedicatórias de seus livros mais recentes, Rubem Fonseca repetiu as mesmas palavras de homenagem a Wilson Martins — em A Confraria dos Espadas (1998) e O doente Molière (2000): “Ao meu descobridor, com amizade e admiração”. A afirmação certeira da vocação é que instituirá no meio literário o autor, dividido inicialmente entre uma atuação no mundo executivo e a vivência profunda da arte, sem deixar de meter-se em polêmicas por esta dualidade. A mais famosa delas: esteve ao lado dos militares na primeira hora do golpe de 1964, pagando depois o preço por este apoio, o que o afastou para sempre da possiblidade de aparecer em público no Brasil, mesmo depois de seu livro Feliz ano novo (1975) ter sido censurado pelo regime militar sob a acusação de pornografia e de incentivo ao palavrão e ao crime. Impiedoso, o escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) o elegeu como mestre de um dos monstros (Amado Couto, nascido na mesma cidade de Rubem Fonseca: Juiz de Fora, Minas Gerais) dedicados à literatura policial em A literatura nazista na América, o que reforçou uma ideia equivocada do autor vendido ao sistema (político e comercial).

A distância entre o cidadão e o artista pode ser avaliada em sua biografia. Se o autor namorou com o Poder em alguns momentos, o escritor criou uma literatura que era revolucionária por ser escrita na ótica dos marginais, dos bandidos tanto da classe média e alta quanto dos assassinos e outros párias sociais. Rubem Fonseca vem de uma tradição carioca que começa com Lima Barreto e que colocou no centro da alta literatura a linguagem quente das ruas, os seres invisíveis, a lógica dos discriminados. O que era tão perigoso, na visão dos militares então no poder (e tragicamente nos de agora) era a existência enquanto linguagem literária destes seres à margem que a sociedade brasileira queria e continua querendo calar — é dentro deste contexto que se deu o assassinato da vereadora e ativista negra Marielle Franco (1979-2018). A violência dos livros de Rubem Fonseca não tem uma função cenográfica, e era obtida pelo autor por meio de uma adesão ao olhar e à linguagem da vasta população de excluídos sociais do Rio de Janeiro e de suas conexões ou conflitos com o crime organizado. É uma violência perigosa ao sistema pelo respeito à biografia destes seres que não apareciam como sujeitos.

Nos anos 1960 e 1970, a literatura brasileira foi dominada pelo conto, e ser ficcionista era sinônimo de ser contista. A existência de revistas marginais e de outras comerciais que publicavam contos criou uma recepção prioritária a este gênero, para o qual estas foram as décadas de ouro. Junto com Dalton Trevisan (1925) e João Antônio (1937-1996), Rubem Fonseca formava o triunvirato do grande e novo conto realista do Brasil. Autores de primeira grandeza, eles deslocaram o foco da linguagem para grupos que viviam uma invisibilidade social, chocando os leitores e criando um sentimento de humanismo sem sanções morais.

Rubem Fonseca vem de uma tradição carioca que começa com Lima Barreto e que colocou no centro da alta literatura a linguagem quente das ruas, os seres invisíveis, a lógica dos discriminados.

Rubem Fonseca jamais abandonará o conto ou o deixará como uma produção secundária em sua trajetória de grande sucesso tanto de público quanto de crítica. Manteve-se contista por toda a sua vida editorial, e foram neste registro seus últimos livros, em que reprisava os velhos temas, as velhas estruturas, os mesmos personagens, escrevendo, tragédia dos que mantêm uma carreira longeva, à maneira de si próprio, mas sem nunca deixar de interessar a seus leitores.

Público contemporâneo
É a partir de A grande arte (1983) que vem o grande sucesso do autor. Nesta década, valores até então sagrados, como experimentação de linguagem e desejo de ruptura com o público, o primeiro presente nos livros de contos de Rubem, dão lugar a uma busca de legibilidade universal. Há um desejo de constituir um público contemporâneo, urbano e cosmopolita para a ficção brasileira, e o caminho era o romance avesso a toda a tradição regionalista ou ortodoxamente experimental que já havia exportado como produtos exóticos autores como Jorge Amado, Guimarães Rosa, Erico Verissimo e Graciliano Ramos. Quem vai liderar esta mudança de chave de nossa ficção (do conto para o romance) é Rubem Fonseca, ampliando a conexão com o cinema e dialogando com o best-seller norte-americano, sem medo de incorporar os seus mecanismos de fidelização de leitura, entre eles a velocidade narrativa, a informação sobre assuntos técnicos, o suspense, o crime, a violência já como gramática cenográfica do romance policial, as cenas de sexo e a defesa da leitura entre os personagens mais improváveis. Em meio a tudo isso, ele apresentava uma viagem ao nada glamouroso submundo carioca, a um Rio do noticiário policial e por isso destino de aventuras imaginárias, uma vez que esta cidade é a mais turística do país. Há excursões por outras áreas de interesse internacional, como a Amazônia, e deslocamentos narrativos à Europa, mas o Rio foi, enquanto paisagem humana e linguística, o habitat literário de Rubem Fonseca.

A partir deste momento, ele cria uma legião de seguidores, uma verdadeira escola, que vai mapear a sociedade brasileira urbanizada velozmente pela expulsão, por parte das monoculturas, das populações rurais. Nasce com Rubem Fonseca mais do que o romance contemporâneo, e sim o romance da pós-modernidade nacional. O autor transita por gêneros e expedientes tidos como comerciais, sem valor, e os dota de uma força literária que determinará o novo boom do romance brasileiro, compreendido entre os anos 1980 e 2010.

Ele incorporou e muitas vezes criou as principais linhas de força do romance da agoridade, na função de catalizador de todas as vertentes de sucesso em curso. Rubem Fonseca iniciou entre nós a onda do romance policial cult (A grande arte, 1983), cujos recursos usou em inúmeras outras obras, de ficção longa ou curta; passou pelo romance histórico (Agosto, 1990), que tem uma densidade de leitura muito alta nos públicos comuns; chegou à onda de autoficção (José, 2011), que no Brasil é uma tendência de grande representatividade; e também pagou tributo à experimentação estrutural (O selvagem da ópera, 1994), em um romance que é uma homenagem ao cinema, pois emula um roteiro, código que o autor dominava, tendo, inclusive, roteirizado algumas de suas próprias obras. Neste caminho de aproveitar o material da literatura de massa para a construção literária, Rubem Fonseca chegou ao extremo de apropriar-se da estrutura mais linear de best-sellers em seus últimos romances (O seminarista, 2009), o que aumentou certa resistência por parte da crítica, que via nele um repetidor de seus próprios truques de magia.

A partir de sua morte, o autor começará a sofrer o julgamento das novas gerações, que não têm o compromisso biográfico daqueles que se formaram a esperar a melhor tradução ficcional do Brasil enquanto país essencialmente violento. O grande mérito estrutural de seus romances está na capacidade de subverter os códigos massificados de leitura, trazendo para o campo da arte o leitor que pertence ao entretenimento. Rubem Fonseca questionou assim, pela adesão a certos recursos, a possibilidade de se fazer uma literatura densa, que assombrasse o leitor, numa era de emoções e enredos superficiais. E fez isso usando os códigos deste momento, sem querer afirmar uma estética folhetinesca, mas a se valer dela como um meio, numa busca de enganar o leitor ingênuo. O formato pseudocomercial de seus últimos romances nos leva a um grau zero de literatura. Dali para baixo é o não-literário, a terra sem lei do texto escrito ao gosto do leitor. Mas, por outro lado, possibilita a consumidores de entretenimento uma aproximação da grande literatura.

Romancista posto nesta fronteira, autor-resumo de uma era, ele foi, tanto pelo vínculo com o Rio de Janeiro quanto pela desinibição ao se apropriar de elementos estranhos ao literário, o Machado de Assis do Brasil de agora.

Rubem Fonseca
Nasceu em 1925, em Juiz de Fora (MG). Publicou mais de 30 livros, entre romances e contos. Autor de obras como O cobrador (1979), Bufo & Spallanzani (1986) e Carne crua (2018), o escritor mineiro venceu seis vezes o Jabuti e foi agraciado com o Camões, um dos mais importantes prêmios literários de língua portuguesa. Morreu em abril de 2020, aos 94 anos de idade.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho