A ilha

Conto Inédito de Adriana Vieira Lomar
Ilustração: Taise Dourado
27/06/2020

O vento deu uma trégua, mas em seu lugar veio a onda de calor. E mesmo posicionada em frente ao mar, debaixo de uma barraca, vi o suor escorrer no meu corpo manchado de outros verões. Avançava na leitura de um livro sobre heróis feito para heróis.

Pausei no mito oriental, o que tinha várias mãos e pés, um polvo. Em frente havia vários guarda sóis, crianças barulhentas e pais alheios que sequer miravam o mar. Todos estavam com o olhar cabisbaixo, envoltos em mensagens ruidosas de tons agudos e estridentes. Ainda estava focada no trecho em que o mito Febo desvendou a paternidade. Ao filho, cedera as rédeas dos cavalos alados. E minha atenção estava voltada para o mar. As ondas gigantes me posicionaram naquele barco e naquela história. Os dois meninos se salvaram e a mala com as roupas e a memória servia de travesseiro para os pequenos.

Sem conhecer a língua e os costumes daquela terra, temiam ser deportados para o país de origem. Isso representava a frustração do sonho do pai que desejava que eles tivessem a chance de terem uma vida melhor.

Na ilha
A ilha tem um formato de sapato bico fino. O mar azul cobalto contrasta com as folhas das palmeiras verde claras. O vento traz refresco. Os dois meninos estão dormindo com as mãos coladas. A unha do mais novo está carcomida, o pus recobre o que falta completando o espaço da unha.

O mais velho abraçado ao irmão tem a pele arrepiada, mas o sono vence os arrepios o fazendo adormecer.

Os dois estão no abrigo de uma pequena falésia. A areia branca e fina aquece os corpos que neste momento estão embalados com o paletó do pai. Os furos grandes exibem o marrom dos seus corpos e o negro do tecido aquece o que ainda está frio.

A manhã aos poucos se rompe.

O primeiro a acordar, o mais novo, cutuca o irmão:

— Jó…

O irmão sonha com a vizinha da aldeia, os dois colhem goiabas e enchem as bacias. São ágeis e sem que percebam estão sendo observados pelos vizinhos.

Depois de encherem as bacias caminham em direção ao arruado. Há querência em pegar na mão, mas a vergonha é maior do que a vontade. Ao chegarem no fim da estrada, olham um para o outro. Ele dá um beijo na bochecha gorducha da menina vizinha.

Em estado de sorriso acorda.

— Nossa, achei que você tinha morrido.

— Ed, enchi o tacho de goiabas.

— Jó, vamos morrer de fome, não vi goiabeira nem qualquer fruteira por aqui.

Os dois de mãos dadas saem da toca e com cuidado começam a desvendar a ilha.

— Não escutei nenhum passo de ninguém.

— A vigília deve ser noturna, Ed.

A passos miúdos eles caminham pela pequena orla. Molham os pés e sentem a água fria. Jó diz que o machucado dos dedos da mão de Ed cicatrizará se ele tiver coragem e ficar uns minutinhos com as mãos imersas no mar.

Ed não reluta e faz o que o irmão sugere.

— Ai ai meus dedos

Enquanto o pus resvala dos dedos, Jó está com um pedaço de toco de coqueiro e com uma pedra vinda do mar. Molda o toco como uma lança e se afasta um pouco mais de Ed. Sentado nas pedras ele lança e fisga um peixe médio.

Vem com o presente nas mãos. Sorri.

No pequeno abrigo eles assam o peixe liso de espinhas. Um coco cai enquanto eles comem.

Tiram da mala uma faca de prata. Abrem um furo nos dois lados e bebem. Nutridos, resolvem explorar a ilha.

Do lado que estão só há uma praia e um areal. Coqueiros.

Do outro lado há construções.

— Fica longe daqui. A gente tem que lembrar que à noite os guardas fazem a ronda.

Diante do perigo eles voltam e adormecem fazendo da mala um travesseiro. Se cobrem com as folhas dos coqueiros.

— Amanhã a gente acorda cedo, pesca, e sai logo.

Sussurram. Os guardas estão por perto. Se preocupam em apagar as pegadas. Sem rastros, conseguem dormir tranquilos.

Adriana Vieira Lomar

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), onde vive, mas cresceu em Maceió (AL). Publicou Carpintaria de sonhos (poesia, edição da autora, 2006), com prefácio de Ivo Barroso, e participou das coletâneas de contos Contágios (Oito e Meio, 2016) e Ninhos (Patuá, 2017).

Rascunho