O elefante

Ele precisa agarrar o animal pelas beiradas e acariciá-lo, mas nada facilita a busca numa savana inventada
Ilustração: Carolina Vigna
30/06/2020

Um elefante o assustou. A luz difusa arrasta as horas para o fim da tarde. Parte da casa está à sombra dos pinheiros. É um dia de semana indiferente ao calendário. Agora, os dias se amontoam em nós feito o pó sobre o tampo dos móveis. O relógio parece ter pouca utilidade. Que dia é hoje? deixou de ser uma pergunta apenas retórica. Perdemo-nos no emaranhado inusual da rotina. O mundo está enclausurado. E nós estamos nele à deriva num universo de incertezas. Nosso balé não passa de um canhestro movimento desesperado. Da poltrona de leitura, vejo-o com o semblante a espantar delicadezas: Não entendi nada — bufa e me atinge com seu cheiro de menino prestes a abandonar a infância. É meu filho. Nos reconhecemos nos vincos da pele, na geometria dos gestos e nos medos cotidianos.

Ele precisa agarrar o animal pelas beiradas e acariciá-lo. Nem as grandes orelhas, o andar lento, a tromba a farejar o limite do solo — nada facilita a busca numa savana inventada. Fabrico um elefante de meus poucos recursos. É um elefante que ele tem entre os dedos. Um elefante magro, desprovido de adiposidades. O animal se debate feito um peixe a nadar no deserto. Não há sincronia entre ambos. Um tanto de madeira tirado a velhos móveis talvez lhe dê apoio. O elefante do meu filho almeja o desequilíbrio. Está cambaleante, bêbado de incompreensões. Ele o enche de algodão, de paina (quem ainda usa paina para fazer pipa?), de doçura. A cola vai fixar suas orelhas pensas. O menino no meio da sala acarinha a pele do animal com dedos de porco-espinho. Não o alimenta, deseja apenas tirar-lhe algum significado. A tromba se enovela, é a parte mais feliz de sua arquitetura. Mas há também as presas, dessa matéria pura que não sei figurar. Pedaços do animal são atirados ao tapete. Aos poucos, surge um filhote a debater-se. Um feto recém-saído das entranhas da mãe. Tão alva essa riqueza a espojar-se nos circos sem perda ou corrupção. E há por fim os olhos, onde se deposita a parte do elefante mais fluida e permanente, alheia a toda fraude. Parece simples construir um elefante. Há, no entanto, engenho e método por trás da suposta facilidade.

A reclamação — quase um pedido de socorro — preenche os poros da casa. Somos apenas nós dois à espera do início do encontro virtual da escola. Não entendi nada. A folha de papel é uma bandeira branca a suplicar salvação. É um poema, digo-lhe. Eu sei, pai. Mas não entendi absolutamente nada. A frase ganha contornos de dramaticidade e revolta: É muito chato. Resta-me acolher as súplicas e transformá-las em calmaria. Sentamo-nos à mesa da cozinha (uma maneira ficcional de localizar geograficamente os cômodos da casa, cuja ausência de paredes internas amplia o vazio). Recolho o livro da estante no qual figura o poema. Vamos ler juntos.

Ele espalha os dedos finos e longos das mãos sobre a mesa. Reorganiza os fios de cabelo que lhe pinicam a testa. A irritação irriga-lhe o olhar. Vocifera baixinho: eis meu pobre elefante pronto para sair à procura de amigos num mundo enfastiado que já não crê nos bichos e duvida das coisas. Sim, meu filho, agora também vivemos um tempo estranho, privado das amizades num mundo de violências. Ele segue o movimento dos meus lábios. Revezamo-nos na construção do nosso elefante. Ei-lo, massa imponente e frágil, que se abana e move lentamente a pele costurada onde há flores de pano e nuvens, alusões a um mundo mais poético onde o amor reagrupa as formas naturais.

Observo-o puxar a folha de papel para mais perto. Finca os olhos nas letras, tenta cavar com os cílios uma terra estrangeira. Não entendo por que tem de ser tão difícil, pai. Não é tão difícil, filho. Seguimos devagar, colando cada pedaço. A lerdeza do nosso personagem nos transmite certo aconchego. Vai o meu elefante pela rua povoada, mas não o querem ver nem mesmo para rir da cauda que ameaça deixá-lo ir sozinho. É todo graça, embora as pernas não ajudem e seu ventre balofo se arrisque a desabar ao mais leve empurrão. Por trás de seus ombros magros, sobressaem as capas enfileiradas nas estantes. Ao correr os olhos pela casa, veem-se milhares de livros. Para que tanto livro? Já leu todos? Você é professor? São perguntas frequentes de quem irrompe a soleira da porta pela primeira vez. Nunca tenho respostas muito claras às inúteis dúvidas. Talvez sirvam para construir um elefante que mostra com elegância sua mínima vida, e não há na cidade alma que se disponha a recolher em si desse corpo sensível a fugitiva imagem, o passo desastrado mas faminto e tocante.

Explico-lhe o possível, as intenções do poeta longilíneo nos anos da Segunda Guerra Mundial. Era também um mundo de incertezas, sofrimentos e muitas mortes. A desesperança naquela época sombria vinha em forma de bombas, tiros, câmaras de gás, fome. Hoje, infiltra-se pelo nosso corpo sem que possamos vislumbrar o inimigo, que, agarrado em nós feito um turista maligno, escancara a nossa fragilidade. No entanto, agora também somos governados por um sádico, pândego a sapatear sobre a morte de muitos. Falta-lhe apenas o ridículo bigodinho. Uma alma penada a desprezar seus mortos. Estamos todos cansados mesmo no acolhimento da casa com sua frágil proteção ao redor.

Os músculos do magro corpo relaxam. Vejo-o esboçar um quase sorriso. A leitura e certa compreensão o suavizam, trazem uma paz possível em tempos de guerra. Tal um cão afetuoso, o elefante refestela-se e roça-lhe os pés sob a mesa. Mas faminto de seres e situações patéticas, de encontros ao luar no mais profundo oceano, sob a raiz das árvores ou no seio das conchas, de luzes que não cegam e brilham através dos troncos mais espessos. Tomamos breves goles de café. Há entre nós a cumplicidade de um instante: eu leio devagar, com pausas medidas; ele presta a necessária atenção. Estamos em um lugar estranho, protegidos: estamos dentro de um livro. Esse passo que vai sem esmagar as plantas no campo de batalha, à procura de sítios, segredos, episódios não contados em livro, de que apenas o vento, as folhas, a formiga reconhecem o talhe, mas que os homens ignoram, pois só ousam mostrar-se sob a paz das cortinas à pálpebra cerrada.

Aos poucos, lentamente, encaminhamo-nos para o final. Em breve, estaremos diante do computador com várias janelinhas. Dentro delas, outras crianças, outros pais, outras vidas. Uma maneira encontrada pela escola para amenizar a palavra saudade. Já está quase na hora, pai. Eu sei, filho. Já estamos terminando. Não é tão difícil. Eu te disse que não era. Agora, estou entendendo um pouco mais deste elefante. Ao contrário de nós, pela pequena janela, a luz do dia perde as forças. E já tarde da noite volta meu elefante, mas volta fatigado, as patas vacilantes se desmancham no pó. Ele não encontrou o de que carecia, o de que carecemos, eu e meu elefante, em que amo disfarçar-me. O rosto do meu filho ilumina-se. Ele também é um elefante — magro, desajeitado, afetuoso. Caminhamos em torno de nós mesmos, medimos os gestos, acarinhamos a convivência. E prosseguimos. Exausto de pesquisa, caiu-lhe o vasto engenho como simples papel. A cola se dissolve e todo o seu conteúdo de perdão, de carícia, de pluma, de algodão, jorra sobre o tapete, qual mito desmontado. Amanhã recomeço.

Amanhã, sempre recomeçaremos.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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