Corpo em estado de poesia

Um passeio pelos versos da argentina Cecilia Pavón, autora de "Discoteca selvagem", e pela concretude de suas relações com o mundo
Cecilia Pavón, autora de Discoteca selvagem
27/06/2020

Editar poesia no Brasil não é tarefa fácil. Apesar disso, muitas editoras têm se voltado quase que exclusivamente para obras poéticas nos últimos tempos, de modo que, felizmente, não poderia enumerar todas aqui sem esquecer de alguma. Como parte desse movimento editorial, muitos poetas estrangeiros também têm sido mais divulgados no país, sendo um exemplo disso a recente antologia de poemas, em edição bilíngue, Discoteca selvagem, da argentina Cecilia Pavón. Esse volume foi citado mais de uma vez em listas de melhores livros do ano passado, como as do Suplemento Pernambuco, e é certamente uma boa porta de entrada não apenas para a produção da autora, mas também de outros poetas hispano-americanos atuais.

Pela antologia, observa-se que a poesia de Pavón não deixa, de certa maneira, de dialogar com a produção poética brasileira de hoje e principalmente com a poesia de seu país, infelizmente pouco traduzida por aqui. Apesar de a Argentina ser uma vizinha nossa, por vezes sua poética nos parece muito distante, não apenas devido aos preços altos para importação dos livros, mas também aos rumos um pouco distintos. Uma iniciativa como a organização e tradução de Discoteca selvagem tem grande valor por ir na contramão dessa tendência, sendo uma edição importante pela escolha de uma poeta que, através de sua atividade como tradutora, também busca estabelecer pontes entre culturas. Antes do lançamento desse volume, poemas esparsos de Pavón já haviam sido traduzidos para internet, como na Modo de usar & co., no escamandro e no Bliss não tem bis. Dois desses poemas, vertidos para o português pela poeta Marília Garcia, foram incluídos na antologia das Edições Jabuticaba: The beauty of music e Bicicleta roubada sequestrada.

A antologia se abre com um poema ligeiro, God, com título em inglês. É uma composição que, de certo modo, anuncia um lugar e uma dicção: “Este é um pequeno poema que não fala/ de Deus mas do Diabo.// Um poema como um pássaro, que vou tentar fazer/ o mais delicado possível”. O divino é colocado para fora do espectro dessa criação, mas, ao mesmo tempo, mantém-se uma relação com ele pelo diabólico, sem que saibamos bem ao que se refere. Esse “pequeno poema” também parece ser uma tentativa, uma intenção de “tentar fazer” algo de uma maneira, no caso, delicada. Em poucos versos, Pavón nos afasta de um plano talvez mais elevado para uma dicção mais terrena que ainda sobrevoa a terra “como um pássaro”. Sobre esse solo em que vivemos, sua poesia parece se desenvolver sempre pelo que temos de humano e de terrestre, puramente corporal.

No poema que se segue a God na antologia, Desejo, novamente nos vemos confrontados com o nosso próprio espaço de vivência. O texto começa com duas perguntas: “Quantas formas de desejo existem? Podem ser tantas assim?”. As respostas vêm aos poucos ao longo dos poemas que se sucedem. Numa investigação de pequenos elementos que o mundo nos oferece, de partes de uma paisagem maior até um quadro pendurado na parede de uma padaria (como em Hoje vi um quadro), surgem diversas oportunidades de experimentar o desejo no que está ali, no que é material e está ao alcance das mãos. Certamente, a relação entre o corpo e o espaço é um dos fios condutores possíveis para essa antologia, como se percebe também em Querido Timo e Mãe.]

A poeta e o mundo
Ao mesmo tempo, outro caminho para leitura é a ênfase na figura da poeta e no próprio ato da criação poética. Por exemplo, em Você & eu, a criação figura como recriação, ou melhor, a escrita que surge apenas do eu e do outro: “falemos como se não existissem mais escritores que não eu e você”. Também se lê que, num mundo pós-apocalíptico, “inventamos nossas primeiras letras fazendo marcas nas tábuas do piso com um canivete suíço”. No poema, portanto, expressa-se esse desejo (mais uma vez o desejo) de reduzir o mundo a duas pessoas, ao ato criativo desses dois que pode resgatar a possibilidade da invenção primordial. No entanto, essa invenção se dá “como se” não existisse o mundo de hoje.

No poema que se segue a este na antologia, Férias, mais uma vez estar alheio da sociedade parece ser um meio de se produzir poesia. Aqui há escritores, mas “a história da literatura é muito estranha” e trata de “algo muito frágil”. Essa literatura lhe parece “muito superficial”, baseada somente no escrever, o que todo mundo pode fazer. Ao mesmo tempo, a redação de um “poema instantâneo” também traz à tona o fato de que “a tristeza e a chateação atravessam o planeta Terra”. Nesse poema, como também em Não quero falar com humanos, mesmo em isolamento, consciente de que o que faz é uma ação muito simples, percebe-se que escrever é ainda dialogar com sentimentos presentes fora do eu.

Apesar da necessidade intrínseca da relação com o outro presente na criação poética, persiste o peso da literatura enquanto instituição, tal qual se pode ler em As regras da poesia contemporânea e A vanguarda. No primeiro poema, as “regras” mencionadas no título lhe “parecem objetivas e impiedosas”, como se não fossem dotadas do sentimento e da emoção tão referidos antes na antologia. Já no segundo poema, retoma-se a obrigação de “sentir-se estranha” para escrever, estranha a ponto de se ver em um “mundo de inimigos” na qual ser parte de uma vanguarda é “ser feliz” e criar poesia através dos tempos.

Por esses elementos, logo se nota que Discoteca selvagem nos apresenta uma Cecilia Pavón com alguns temas bastante frequentes, quase obsessivos, como na poética de tantos outros autores. Claramente, há a vontade de se estabelecer enquanto um corpo, um eu, uma poeta diante dos outros, do mundo inteiro. Como outros contemporâneos seus argentinos, a poeta parece se locomover por uma cidade grande como Buenos Aires para escrever a partir do que é concreto. Nessa antologia, como Priscilla Campos destacou em sua resenha para a edição de dezembro passado do Suplemento Pernambuco, “cada poema é uma espécie de bilhete interessado em resgatar a materialidade do mundo”. Esse resgate pode ser um processo contraditório, em que se busca o mundo e, ao mesmo tempo, foge-se dele.

Ainda nesse livro, temos acesso também a “notas das organizadoras”, estruturadas de forma bem peculiar. Em vez do corriqueiro texto sucinto, de caráter meramente informativo, que é disponibilizado sob forma de nota de rodapé ou de nota de fim de texto, há uma simulação de correspondência entre as organizadoras, Clarisse Lyra (Cacá, nessas supostas cartas) e Mariana Ruggieri (Mari). Elas trocam entre si ideias e sentimentos em relação à poesia de Pavón durante o processo de tradução a quatro mãos, demonstrando como se viram atravessadas pelas preocupações da autora. Por esse diálogo, o impulso criativo também surge, levando-as a escrever também, além de traduzir.

Após a leitura de Discoteca selvagem, fica claro que a razão para se traduzir Cecilia Pavón e tantos outros autores está nessa relação com a escrita presente nos poemas da argentina e também nas notas das organizadoras. O que se cria por sua poesia é também criação, num movimento incessante de tentativa de se estabelecer relações uns com os outros. Com certeza, é um indício de que ouvir uma voz poética de não muito longe, mas de outra língua, de outra cultura, tornou-se imperativo para todos que queiram, enfim, concretizar esse desejo de se relacionar com o mundo.

Discoteca selvagem
Cecilia Pavón
Trad.: Clarisse Lyra e Mariana Ruggieri
Jabuticaba
90 págs.
Cecilia Pavón
Nascida em Mendoza, no oeste da Argentina, em 1973, é escritora e tradutora. Formada em Letras pela Universidad de Buenos Aires (UBA), fundou o coletivo Belleza y Felicidad com a artista e poeta Fernanda Laguna em 1999. Já publicou mais de dez livros em diversas editoras de seu país.
Daniel Falkemback

É professor, tradutor e doutorando em Letras na UFPR.

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