Ilusões (quase) perdidas

Clássico da literatura italiana, "A ilha de Arturo" narra as angústias e sonhos de um jovem em busca de amadurecimento
Elsa Morante, autora de A ilha de Arturo
29/05/2020

O que resta quando as fantasias responsáveis por sustentar determinadas concepções de vida caem por terra? No caso do narrador de A ilha de Arturo, parece ser a partida da ilha que enclausurava os limites do conhecido ao longo da infância e da adolescência. O título, aliás, ao fim do romance parece ganhar outra dimensão: para além da acepção em termos geográficos, a ilha poderia ser lida também como uma metonímia das “memórias de um garoto”, subtítulo da narrativa. O protagonista cresce basicamente por si só, em um casarão com marcas de abandono e sem o amparo de palavras, carinhosas ou de repreensão, que pudessem auxiliá-lo na circunscrição de um lugar para si no mundo.

O recurso para salvação do menino é a imaginação: os livros e as projeções hiperbólicas de futuro são as ferramentas possíveis para que a aridez de ser fruto de uma mãe morta e um pai desertor não o espremam nos primeiros anos de vida. E é justamente quando o revestimento da realidade com camadas de fantasia se torna inviável que a ilha deixa de ser um abrigo e se torna um local repulsivo.

A forte presença de elementos imaginativos e o papel quase subsidiário da realidade palpável são destacados no posfácio, de Davi Pessoa, como traços particulares da prosa de Morante. A autora causou algum estranhamento com os seus primeiros livros, lançados no pós-guerra, por “não responder necessariamente a uma poética neorrealista”. Esse aspecto não deve ser entendido como alheamento das questões que movimentavam o contexto histórico, o que pode ser notado em A ilha de Arturo, já que a corrosão das imagens heroicas de desbravamento do narrador é sucedida pelo alistamento voluntário no exército na Segunda Guerra.

O mundo dos homens
A abordagem da passagem do tempo e de questões sociais e históricas recortada pela subjetividade de um narrador pode fornecer uma margem de aproximação entre o romance de Morante e a tetralogia A amiga genial (2014-2017), de Elena Ferrante. Nos ensaios de Frantumaglia — Os caminhos de uma escritora (2017), o pseudônimo, que tanto causou rebuliço na literatura contemporânea, se diz uma grande leitora e admiradora de Morante. A composição de perspectivas dessa natureza também poderia contar com o amparo da leitura de A maçã no escuro (1961), de Clarice Lispector, proposta por Gilda de Mello e Souza. No ensaio O vertiginoso relance, a crítica propõe que a escrita feminina dá um valor ímpar aos detalhes, destaque resultante das interdições impostas por tanto tempo às mulheres. Já que o mundo de fora era vetado, restava a atenção com “olhar de míope” aos mínimos componentes dos espaços a elas licenciados.

O desvio parece conveniente para comentar o papel que as mulheres assumem em A ilha de Arturo, bem como para explorar a composição da voz narrativa — um homem que lembra da infância e da adolescência. Da mãe, Arturo só conhece uma fotografia, a partir da qual ele traça uma série de fantasias para construir um estatuto de absoluta particularidade para a mulher que lhe deu a vida e morreu no parto. A próxima presença feminina na vida do menino é a cachorra de estimação, Immacolatella, praticamente sua única companhia nos primeiros anos de vida, porque o pai está sempre ausente em viagens misteriosas. E a cadela encontra o mesmo destino da mãe de Arturo quando também não resiste ao parto. Essa cena parece encerrar uma primeira parte do romance, dedicada a eventos sumarizados que pintam uma infância com traços idílicos, cujo tom transforma a omissão do pai em uma inclinação intrínseca ao nomadismo heroico. A coincidência trágica que une a mãe à cadela não pode passar em branco: até a infância de Arturo, as presenças femininas conhecidas não sobreviviam à gestação de vida.

A presença de outras mulheres na vida do menino é impossibilitada pela fama da casa onde mora. Apelidada de Casa dei Guaglioni — rapazes, em dialeto napolitano —, a estrutura fora anteriormente um mosteiro e, quando convertida em habitação, o seu primeiro proprietário estabelece como regra a proibição de mulheres no ambiente. A interdição é violada, inicialmente, quando o pai de Arturo herda a moradia e se casa com a mãe do rapaz. A morte precoce da moça, então, é entendida como uma maldição incontestável.

A transição da infância para a adolescência é marcada por uma segunda violação da regra que interditava a presença das mulheres. O pai de Arturo se casa novamente com uma moça apenas dois anos mais velha que o filho, acontecimento com profundas implicações na vida do rapaz e também de cunho narrativo. A alteração mais notável é a introdução da ambivalência na vida de um narrador que abre suas memórias com uma lista de “certezas absolutas”. Se, a princípio, a atenção curiosa de Nunzia comove Arturo, após a primeira noite de núpcias da moça com o pai, uma cortante hostilidade passa a intermediar todas as palavras entre os dois. Com agressividade ingênua, o menino diz a todo tempo que pretende relegar a madrasta à indiferença. A intenção declarada do narrador, no entanto, entra em choque com a brusca mudança do foco narrativo que sucede a chegada de Nunzia: ele só parece ser capaz de falar dela. O pai, adorado pelo jovem, assume um papel secundário e a adolescência do narrador passa a ser contada em função do afeto que ele busca incessantemente provocar na madrasta.

Por meio da personagem Nunzia, talvez seja possível pensar na instabilidade que as mulheres provocam nas certezas masculinas. Antes da madrasta, certa estabilidade regia a solitária vida de Arturo, na qual o silêncio em que estava imerso só podia ser parcialmente rompido com os esboços de poesia, a leitura e os destinos fantasiosos que traçava para si. A chegada da moça o apresenta ao ciúme, a um amor de caráter edipiano, à desolação da rejeição, ao cuidado e, sobretudo, a certa noção de compromisso. Esse traço é bastante relevante: embora o casamento com o pai de Arturo seja extremamente insatisfatório para Nunzia, o matrimônio e a maternidade do meio-irmão do protagonista parecem incontornáveis a ela. O amor de Arturo, portanto, fadado à impossibilidade, encontra barreira justamente em uma noção de fidelidade que está ausente no mundo dos homens: enquanto o pai rompe sumariamente todas as promessas que exibe com um revestimento de grandeza, Nunzia silenciosamente escolhe manter os pactos que lhe parecem valorosos, independentemente do custo de infelicidade envolvido.

Certezas questionadas
Os seis postulados que compõem as certezas absolutas de Arturo, apresentados já na abertura da narrativa, afirmam a autoridade paterna, a coragem e a impossibilidade do recuo perante o combate, o imperdoável da traição, a inferioridade dos outros habitantes da ilha de Procida se comparados ao narrador e ao pai dele, a particularidade do afeto materno e a inexistência de instâncias superiores aos homens. Uma linha de leitura do romance seria a localização do caráter falacioso que cada uma delas assume ao passo que Arturo amadurece.

A superioridade atribuída ao pai, responsável também por estabelecer a inferioridade dos nativos de Procida, parece ser a certeza mais resistente e a que mais provoca dor quando vem abaixo, justamente porque o pai violou outras duas certezas: a premência da coragem e o repúdio à traição. Já o inigualável do afeto materno e a inexistência de Deus se mostram com tamanha crueza ao ponto do que era afirmado como diretriz de conduta se apresentar como limites intransponíveis para imaginação.

O amor materno é o que impede Nunzia de ceder às investidas de Arturo, e a aspereza do mundo desencantado redimensiona os anseios de exploração: a travessia dos mares que isolam a ilha não será motivada por empreitadas desbravadoras, mas sim pela guerra. Esse ponto garante considerável complexidade ao romance, já que, em um contexto literário marcado pelo trato direto com a realidade, a representação dos horrores que marcaram o século 20 é alusiva e, talvez por isso, potente. No romance, o amadurecimento, concomitante ao início do conflito mundial, passa pelo que interdita o fantasiar e o vazio posterior às ilusões subtraídas.

A ilha de Arturo
Elsa Morante
Trad.: Roberta Barni
Carambaia
381 págs.
Elsa Morante
Nasceu em Roma, na Itália, em 1912. Ainda na infância começou a escrever fábulas e pequenas narrativas, publicadas em suplementos infantis de jornais de grande circulação. Contista, romancista e ensaísta, ganhou prêmios de prestígio, como o Viareggio, por Menzogna e sortilegio (1948), e o Strega, por A ilha de Arturo (1957). Em 2017, a Âyiné publicou a coletânea de ensaios Pró ou contra a bomba atômica (1987). Morreu em 1985.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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