O rococó erótico de Bocage

Usualmente mal lidos e diagnosticados depreciativamente, os poemas “convencionais” do escritor português são deliciosamente maliciosos
Quem, diabos, hoje, “trombeteia” Bocage?
30/04/2020

“Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) é um caso e tanto em matéria de libertinagem. Mesmo que não se tenha lido jamais qualquer de seus poemas, o seu nome, trombeteado pelas mil bocas da má Fama (…)”.

Escrevi isso há uns 30 anos. Lendo-o, agora, parece ainda mais velho. Quem, diabos, hoje, “trombeteia” Bocage? Até me admiro de, sem mais nem menos, ter-me lembrado dele. Sem menos, porque há tempos não leio qualquer estudo sobre ele. E ao menos desde a edição da Lello, de 1968, não conheço nada de importante editado dele. No Brasil, só sei de edições de bolso, precárias, de partes de sua obra — mas ainda bem que elas existem! Não é de estranhar, talvez, nos tempos de moralismo fundamentalista em que vivemos. E suspeito que agravado, no caso dele, pelos pruridos do politicamente correto: alguém pode achar que a descrição epistolar de uma iniciação sexual é um incentivo ao estupro, vai saber!

O certo é que Bocage anda, não sei se “cancelado”, como dizem agora, mas pouco lido e comentado. É estupidez, porque se trata de um dos maiores poetas da língua portuguesa. E o que, hoje, pode parecer ofensivo, na verdade, concebido historicamente, está perfeitamente de acordo com o sistema retórico-poético de conveniências que faz corresponder o estilo à matéria tratada, de modo a incorporar, de maneira regrada e decorosa, mesmo a matéria mais vil. Escolher um assunto baixo nada tem de menor ou condenável. O próprio Bocage o afirma numa passagem de Pena de Talião:

Tema, que escolhes, gênero, que abraças,
Não te honra, nem desluz: no desempenho

O lustre, a glória estão. Tem jus à fama
O vate, ou cante heróis, ou cante amores,
Contanto que Febo as leis não torça,
Aos mui vários assuntos ajustadas.
Coa matéria convém casar o estilo:
Levante-se a expressão, se é grande a ideia,
Se a ideia é negra, a locução negreje,
E tênue sendo, se atenue a frase.

Ou seja, Bocage está alertando para a relevância hermenêutica do sistema de decoros a presidir os gêneros poéticos. Tomando o sistema como pressuposto de leitura, ele relativiza a suposta hierarquia temática, de natureza moral, anterior à qualidade do desempenho poético. Seria muito importante que os apedeutas que desgraçadamente calharam de presidir pastas e ministérios, assim como, de outro lado, os ativistas de causas edificantes, se educassem minimamente e compreendessem que não é adequado julgar a moralidade de uma obra de arte sem considerar justamente a qualidade de suas propriedades artísticas.

Isto dito, não é minha intenção tratar aqui do Bocage mais obsceno e fescenino. Queria apenas apontar um aspecto intensamente erótico de sua poesia que, entretanto, não se manifesta por meio de descrições sexuais gráficas. Falo de seus poemas, digamos, “rococós”, que são os usualmente mais mal lidos e diagnosticados depreciativamente como “convencionais”, como se a convenção fosse um equívoco em si, e não uma condição da poesia engenhosa do período. Ignorantes disso, muitos críticos modernos tendem a valorizar apenas os poemas que referem as suas experiências solitárias no cárcere ou, enfim, os que permitem entrever alguma pessoalidade ou psicologia. O engano dessa atitude é patente: há tanto artifício e retórica nas suas criações de locus horrendus como nas de locus amoenus. Um é escuro e frio, outro é solar e pacífico, mas a convenção preside a ambos.

Só porque a crítica moderna é ainda romântica, ela pode passar batida por esses poemas rococós sem reconhecer o quanto têm de deliciosamente maliciosos. Nas cenas galantes dos pequeninos Amores, “brandos sequazes” de Cupido, estabanado e cruel, a libertinagem de Bocage está muito bem representada. Dou-lhes um exemplo:

Mavorte, porque em pérfida cilada
O cruel moço alígero o ferira,
Não faz caso da mãe, que chora e brada,
Quer punir o traidor, que lhe fugira:

Na sinistra o pavês, na dextra a espada,
Nos ígneos olhos fuzilante a ira,
Pula à negra carroça ensanguentada,
Que Belona infernal coas Fúrias tira:

Assim parte, assim voa; eis que vê posto
No colo de Marília o deus alado,
No colo aonde tem mimoso encosto: 

Já Marte arroja as armas, e aplacado
Diz, inclinando o formidável rosto:
“Valha-te, Amor, esse lugar sagrado!

Seja recostando-se como um bichinho de estimação na elevação do seio de Marília, ou zombando da ferocidade das armas de Marte, já paralisadas diante da nudez da ninfa, o Amor guarda um ar buliçoso que apenas Boucher ou Fragonard, à época, saberiam debuxar com o mesmo charme e malícia. Eis outro trecho com foco no mesmo colo aprazível:

Reside em teus costumes a candura,
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teus risos se mistura (…)

Por um gracioso equívoco, a fidelidade do ânimo amoroso de Marília confunde-se com a dureza jovem dos seus seios. Aliás, divulgadas as perfeições da amada como análogos delicados do recreio campestre, é preciso admitir que nada aí é ingênuo; os gestos que fingem inocência, têm, antes, um caráter quase perverso pela forma copiosa como se juntam, adornam e se oferecem:

Olha, Marília, as flautas dos pastores

Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores! 

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha para,
Ora nos ares sussurrando gira (…)

Excitada pelos beijinhos dos Amores, a cena pastoril remata nesse movimento inquieto das “abelhinhas”, insetos galantes por excelência, tanto pela cor, como pelo picante e venenoso. Os seus movimentos nervosos e imprevistos, já não acompanham zumbidos, mas sussurros.

A libertinagem, portanto, não está ausente dessa graciosidade falsamente inocente, pois o trabalho poético aqui consiste justamente em saber dispor véus para melhor insinuar as perfeições do corpo e atiçar a fantasia concupiscente:

Debalde um véu cioso, oh Nise, encobre
Intactas perfeições ao meu desejo;
Tudo o que escondes, tudo o que não vejo
A mente audaz e alígera descobre:

Por mais e mais que as sentinelas dobre
A sisuda Modéstia, o cauto Pejo,
Teus braços logro, teus encantos beijo,
Por milagre da ideia afoita, e nobre:

Inda que prêmio teu rigor me negue,
Do pensamento a indômita porfia
Ao mais doce prazer me deixa entregue:

Que pode contra Amor a tirania,
Se as delícias, que a vista não consegue,
Consegue a temerária fantasia?

Em todas essas cenas pastoris, a construção do aspecto assustadiço e grácil está industriosamente a serviço da malícia. E é justamente porque essa poesia fere de través, com a face mais terna e inocente, que ela se avizinha da licenciosidade:

Em deleitoso e tácito retiro,
Suspensa entre temor, entre o desejo,
Flutua a bela, a cuja posse aspiro(…)

Pode-se pedir poesia mais encantadoramente equívoca e brejeira?

Talvez o problema atual de Bocage resida justamente aí, no seu aspecto equívoco, logo, incompatível com um tempo tosco em que tudo tem de se dizer e declarar às escâncaras.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho