Liberdade e risco

Vinte anos depois de sua fundação, e apesar dos evidentes sinais de “equilíbrio e maturidade”, o Rascunho ainda preserva o mesmo frescor de origem
Ilustração: Bruno Schier
30/04/2020

Quando surgiu, há 20 anos, o Rascunho guardava fortes características atribuídas, em geral, à juventude: era rebelde, muitas vezes intransigente, defendia suas posições com uma ardência desproporcional, era um jornal feroz. Era também um jornal corajoso que, algumas vezes, tropeçava na própria coragem. Seu fundador e editor, Rogério Pereira, era um jovem de poucos mais de 20 anos. Os primeiros colaboradores eram, em maioria, ainda mais novos.

Naquele ano de 2000, eu, ao contrário, já me aproximava dos 50 anos de idade. Quando leu meu primeiro texto no Rascunho, um amigo escritor, homem equilibrado e prudente, me advertiu: “Afaste-se. Você não precisa disso. Pode ser perigoso”. Lembrou-me que eu tinha “um nome a zelar” — em 1999, eu acabara de publicar meu quinto livro, Inventário das sombras — e que tinha também uma “imagem a preservar”. Não podia me misturar com aqueles garotos arteiros, corajosos sem dúvida, cheios de energia, ele admitia, mas que disparavam tiros a esmo, escreviam com dentes arreganhados e diziam as coisas, quase sempre, sem meias palavras. Foi a advertência que ouvi, mas descartei.

Não acredito que a rebeldia e a irreverência sejam uma exclusividade da juventude. Basta olhar à nossa volta: quantos jovens acomodados e conservadores conhecemos! Diante de alguns textos publicados pelo jornal, fiquei, de fato, um pouco apreensivo. Mas isso era previsível: eu já tinha cabelos brancos, carregava nas costas uma trajetória de 30 anos na grande imprensa, tinha — como dizem de boca cheia — “uma história”, enquanto aqueles meninos não tinham nada a perder. Pois foi justamente essa liberdade interior que me pareceu, desde as primeiras páginas, fascinante. Para respirá-la, para sorvê-la um pouco, me aproximei do Rascunho. O desejo de pisar um território onde eu não era esperado. O projeto de, na meia idade, me renovar. Não só não me arrependo do que fiz, mas me orgulho do que fiz.

Agora, 20 anos depois, apesar dos evidentes sinais de “equilíbrio e maturidade” que hoje exibe, o Rascunho ainda preserva — felizmente — o mesmo frescor de origem. Ainda é vibrante, ainda não perdeu o medo de errar ou de exagerar, e insiste em não abdicar da liberdade — que é, de fato, um elemento crucial da literatura. Hoje, quando a literatura e a cultura estão sob séria ameaça, quando o conservadorismo envenena o país, o Rascunho — que não perde a rebeldia e que olha fixamente para o futuro — se torna ainda mais necessário. Para fazer cultura, mais do que obedecer, precisamos aprender a desobedecer. Mais do que aceitar regras e padrões, devemos rompê-los. Mais do que repetir, precisamos inventar. Essa constatação inclui, de fato, algum risco. Mas sem uma alta dose de risco nada se cria. Nada se vive.

A ideia de um rascunho se torna, em si, cada vez mais preciosa. Em tempos depressivos e regressivos, quando a literatura e as artes se encontram sob intenso bombardeio, devemos passar a limpo nossa história recente, ou não conseguiremos esboçar um futuro. Quando a literatura está em risco, e ela está em risco, valores como o pluralismo, a diversidade, o choque leal de pontos de vista, o diálogo direto e sem meias palavras, a ousadia intelectual, nunca foram tão urgentes. A literatura é uma atividade solitária, o escritor passa anos a fio sozinho, debruçado sobre um texto. Se as janelas não estiverem abertas, se o ambiente não for arejado pelas novas ideias e pelo diálogo, um escritor pode definhar e desistir. Embora viva isolado, recolhido a um mundo que é só seu, o escritor nunca precisou tanto do mundo.

Com a chegada do século 21, consolidou-se uma inédita concentração no mercado editorial. Voltada para as vendas, para as listas de bestsellers, para as grandes feiras do mercado e para os negócios internacionais, a literatura comercial se tornou vitoriosa — e muitos escritores, por oportunismo, ou por cinismo, a abraçam. A literatura comercial, com seus modismos, suas tendências consagradas, seu apego à legibilidade e à clareza, seus preconceitos intelectuais, sua obsessão pela rapidez e pelos resultados, aos poucos domina a cena. E agora, não bastasse isso, se ergue em torno dos escritores um segundo obstáculo: o ódio à literatura e às artes se torna uma política oficial.

Nesse cenário devastado, o Rascunho é ainda mais forte. O Brasil nunca precisou tanto de novos caminhos, de novos esboços de futuro, de novos rascunhos de si. Para se contrapor ao retrocesso e à barbárie, só mesmo a coragem de arriscar e rascunhar. Ou esboçamos um novo país, ou afundamos. Contra a monotonia e a repetição, contra a cegueira dos dogmas, contra o cinismo das convicções, precisamos dos contrastes e dos riscos. Contra a “literatura para vender”, precisamos de uma “literatura para ser”. Sempre se disse, e ainda hoje se diz, que a literatura está morrendo, ou até que ela já morreu. Isso é uma tolice, mas é também, em um paradoxo, sinal de sua vitalidade. Ela não é uma “diversão” — como hoje os comerciantes se apressam em rotulá-la. Não é uma distração, ou um objeto de lazer, como vende a indústria do entretenimento, igualando-a aos filmes catástrofe e aos parques temáticos. A literatura mexe com fogo. Ela queima — e é dessas feridas que alguma verdade escorre.

Ao longo desses 20 anos, e isso apesar de todas as turbulências — ou por causa delas —, o Rascunho só cresceu. E só me alimentou. Esta é, sim, uma afirmação que devo fazer em primeira pessoa. Um testemunho que me sinto obrigado a oferecer. Aqui no meu canto, nessa pequena coluna que batizei com o mesmo nome de um livro que publiquei em 2007, não posso me esquivar da luta em que, há 20 anos, me engajei. Reafirmar, mais uma vez, a aposta na diversidade, no pluralismo, no confronto de ideias e no risco é minha maneira de comemorar essa data. É uma maneira de dizer a mim mesmo que, contra as evidências da cronologia, uma parte de mim se conserva com 20 anos também. Devo isso também ao Rascunho.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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