Menino que mora num planeta, de Roseana Murray

A poeta, para encantar o leitor iniciante, lança mão de uma linguagem singela, sentimental, acessível, de fácil decifração
A poeta Roseana Murray, autora de “Menino que mora num planeta”
30/03/2020

Menino que mora num planeta
azul feito a cauda de um cometa
quer se corresponder com alguém
de outra galáxia.
Neste planeta onde o menino mora,
as coisas não vão tão bem assim:
o azul está ficando desbotado,
e os homens brincam de guerra.
É só apertar um botão
que o planeta Terra vai pelos ares…
Então o menino procura com urgência
alguém de outra galáxia
para trocarem selos, figurinhas
e esperanças.

***

Habitante de outra galáxia
aceita corresponder-se com o menino
do planeta azul.
O mundo deste habitante é todo
feito de vento e cheira a jasmim.
Não há fome nem há guerra
e, nas tardes perfumadas,
as pessoas passeiam de mãos dadas
e costumam rir à toa.
Nesta galáxia ninguém faz a morte,
ela acontece naturalmente,
como o sono depois da festa.
Os habitantes não mentem
e por isso os seus olhos
brilham como riachos.
O habitante da outra galáxia
aceita trocar selos e figurinhas
e pede ao menino
que encha os bolsos de esperanças,
e não só os bolsos, mas também as mãos
e os cabelos, a voz, o coração,
que a doença do planeta azul
ainda tem solução.

Este poema, na verdade, são dois. No primeiro, um menino da Terra (“planeta azul”) procura “alguém de outra galáxia”; na página seguinte, vem a resposta. Ambos fazem parte de Classificados poéticos, de Roseana Murray, publicado em 1984, e emblematicamente encerram o livro, todo com poemas tendo em mira o leitor-mirim. Por isso, a poeta (adulta) lança mão de uma linguagem singela, sentimental, acessível, de fácil decifração. No conjunto, o livro privilegia temas ligados à defesa da natureza, dos animais, das crianças e tem um tom em geral otimista, confiante na melhoria da humanidade, como se vê em “Procura-se algum lugar do planeta/ onde a vida seja sempre uma festa/ onde o homem não mate/ nem bicho nem homem/ e deixe em paz/ as árvores na floresta./// Procura-se algum lugar no planeta/ onde a vida seja sempre uma dança/ e mesmo as pessoas mais graves/ tenham no rosto um olhar de criança”. Como é típico do imaginário infantil, e daí a sedução pelos super-heróis, a ideia sempre ambiciosa (como sabemos, utópica) passa por salvar o planeta, a humanidade, o mundo todo.

Quando vieram a público, em 1984, livro e poema pegaram carona no imenso sucesso da canção Lindo balão azul, de 1982, de Guilherme Arantes, que, com apoio massivo da tevê, circulou pelo país afora: “(…) Pegar carona/ Nessa cauda de cometa/ Ver a via láctea/ Estrada tão bonita/ Brincar de esconde-esconde/ Numa nebulosa/ Voltar pra casa/ Nosso lindo balão azul”. O apelo é evidente, nos versos da canção e do poema: se a vida está triste, careta, difícil, violenta aqui na Terra, então o lance é buscar, inventar alguma Pasárgada que dê conta da felicidade. A Terra, lugar desagradável e doente, corre risco de desaparecer, ir “pelos ares”. Talvez alguém de longe, bem longe, tenha “solução” para tanta dissolução.

A descrição que faz o habitante de seu longínquo habitat nada mais é que a descrição que o menino terráqueo gostaria de fazer de seu lugar: paz, tranquilidade, beleza, justiça, solidariedade, alegria, sinceridade. O menino descobre na pele o que é o “princípio de realidade”, enquanto seu outro/duplo vive a fantasia do “princípio de prazer”. A singeleza do poema tenta harmonizar esse conflito algo esquizofrênico, que consiste em sermos incontornavelmente obrigados a viver a dura e nua realidade, enquanto fabricamos quimeras que anestesiam ou sublimam a dor da existência. Na Teoria estética, Adorno diz que “a possibilidade real da utopia — o fato de a terra, segundo o estado das forças produtivas, poder ser aqui e agora o paraíso — se conjuga num ponto extremo com a possibilidade da catástrofe total”. Utopia e catástrofe, prazer e realidade, poesia e vida se entrecruzam sem reconciliação. Para retomar Freud, essa impossibilidade de conciliação entre o que se deseja e o que se pode produz um angustiante mal-estar, controlado (quando controlado) ao preço de repressão e melancolia. Tornar-se adulto é ir se reconhecendo em um mundo que não mais satisfaz, ou finge satisfazer, meus anseios infantis.

Como se sabe, mesmo entre os raros leitores e, entre estes, os mais raros leitores de poesia, raríssimos são aqueles que se dedicam a ler poemas infantis, ou, noutras palavras, poemas feitos pensando no destinatário-criança. Na verdade, muitos (e me refiro somente aos tais raros) torcem o nariz quando se diz “poesia infantil”, por preconceito, ignorância, má-fé, o que seja. Em Humor e poesia: reflexões a partir do manual do professor, Daiane Francis e Mariana Ramalhete mostram como, mesmo no livro didático, que deveria ser um veículo de divulgação da poesia para crianças e jovens, o poema infantil fica subsumido (à maneira da criança diante do mundo adulto): “quando a criança se depara com um poema no livro e não consegue compreendê-lo ou não é sugerido que ela o faça, entende-se que não ocorreu um diálogo apropriado para o trabalho com a poesia infantil, que a presença daquele texto em seu livro é pouco importante, que não faz sentido e nem cria vínculos”. Sem vínculos, a criança vai para um lado, e a poesia e o livro vão para outro. E essa separação (há fartas pesquisas e estatísticas a comprovar) muito “raramente” vai ser reparada.

Tal cisão se assemelha à cisão do poema de Roseana Murray: um planeta feio, desbotado, em perigo, sem esperança, em suma, sem poesia, pede socorro para que se transforme em algo à base do belo, vento e jasmim, perfume e riacho. A solução está à vista de todos: cada verso do poema revela o que já se sabe: a esperança está em o próprio poema existir, ser lido, decifrado, divulgado, recriado, multiplicado. Daí, a ideia bacana de “classificados poéticos”, que precisa da existência de uma escuta. O “duploema” de Roseana insinua que o poema quer ser lido, que a criança se quer ouvida, que a Terra quer ajuda, que a arte requer ser porta-voz dos oprimidos.

Poemas infantis podem parecer piegas e apelativos, e às vezes são, mas fazem parte da linguagem elaborada para crianças certas manhas que se destinam a seduzi-las — à maneira das manhas de poetas, digamos, cerebrinos. Cada um na sua. Aqui, a manha de fazer poemas à moda de “classificados poéticos” já funciona bem, pois pressupõe e aciona um interlocutor; e a sacada de forjar uma resposta tem também um bom efeito. Uma rápida procura na internet mostra como o livro e os poemas tiveram grande repercussão, pois estimulam o lúdico da criança-leitora, que escuta e é levada a dar um retorno.

Poemas “adultos” tendem a ser autossuficientes, encaracolados, ensimesmados, solitários — cerebrinos. Mas poemas “infantis”, feito estes de Roseana Murray, se dão incompletos, se jogam, se expõem, querem afeto e companhia e nos lembram que, sim, fomos crianças um dia, e já quisemos salvar o mundo. Crescemos e (“Psiu, não conte a nossos filhos”) fracassamos. Basta ver o planeta-Brasil de hoje: desbotado, triste, doente, mórbido, um país que “faz a morte” acontecer.

A esperança está em que a criança cresça e, adulta, entenda por que seu planeta se encontra em tal estado desolador. Entender é condição para chegar à solução: transformar-se de criança em adulto para transformar o país e o planeta, como quis o poeta Maiakovski, na tradução adaptada de Caetano, “para que ninguém mais tenha de sacrificar-se/ por uma casa, um buraco”. Quem sabe, num futuro, poemas como este não sejam mais escritos, e sejam até de difícil compreensão, porque a solução terá sido efetivamente encontrada e a Terra se parecerá àquela galáxia sem fome nem guerra. Por ora, no entanto, resta ao menino imaginar o paraíso, enquanto aumenta sua coleção de selos e figurinhas.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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