Eu não sou sozinha

Obra de Jarid Arraes é soco no estômago do preconceito em tempos de “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”
Jarid Arraes, autora de “Redemoinho em dia quente”
31/01/2020

Fazer literatura no Brasil atual é, antes de tudo, um ato de resistência. Essa é uma das tantas formas possíveis para apresentar Jarid Arraes. Incentivada a ler desde muito jovem pela mãe e apresentada aos cordéis pelo pai e pelo avô, não é difícil imaginar o porquê do nome dessa escritora arretada, nascida em Juazeiro do Norte, no Ceará, ter despontado como uma das vozes mais ativas da literatura brasileira contemporânea. Não é à toa que, dos quatro livros publicados por ela até o momento, dois são dedicados à literatura de cordel: Heroínas negras brasileiras (2017) e Um buraco com meu nome (2018). No primeiro, uma grande e necessária homenagem a todas as mulheres da história do Brasil que foram “esquecidas” pela narrativa oficial; no segundo, Jarid mergulha em suas origens e faz poesia com uma realidade nada poética. A escritora, que hoje vive em São Paulo (SP), também publicou As lendas de Dandara (2016), obra em que dá vida à companheira de Zumbi dos Palmares na luta contra a escravidão no Brasil. Na falta de registros oficiais adequados, Jarid fabulou uma trama repleta de magia e que poderia muito bem ser indicada como leitura para os estudantes brasileiros e demais leitores.

Pelo seu trabalho mais recente, Redemoinho em dia quente (contos, 2019), Jarid levou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). No livro, a escritora mais uma vez dá lugar de destaque para mulheres “invisíveis”, numa espécie de cegueira seletiva que ainda persiste no Brasil em pleno ano de 2019. É da periferia marcada por injustiças sociais que as protagonistas das 30 narrativas falam. São vozes de pessoas que não aceitam mais o silêncio imposto pela desigualdade. Talvez seja por isso que Jarid tenha se tornado uma das fundadoras do Clube de Escrita para Mulheres em São Paulo, espaço no qual ela e outras escritoras experimentam e desenvolvem textos sob o olhar crítico de um grupo focado na escrita feminina.

• Como o mundo da literatura surgiu na sua vida e quando e como foi a sua descoberta de que você é uma escritora? Como foi sua primeira lembrança com a poesia ou um livro na mão?
A literatura entrou na minha vida de duas formas. Uma mais singela, mas que considero a base de tudo, que foi por meio de minha mãe, que lia livros para mim quando eu era bem pequena. De tanto que ela lia e relia os livros, eu decorava tudo e contava as histórias de volta do jeito que eram escritas. E também foi minha mãe quem me ensinou a ler, antes do que seria o tempo escolar. Então, com essa base formada, veio a literatura de cordel do meu avô e do meu pai, ambos cordelistas e poetas. Eu cresci lendo os cordéis deles, as poesias do meu pai, pegando os livros de poesia do meu pai emprestados. Também lembro da influência da minha avó paterna. Teve uma fase da minha infância, acho que eu tinha uns sete anos, em que eu ficava perguntando para ela o significado de todas as palavras. Se alguém falava alguma coisa na televisão, eu perguntava. Eram tantas palavras seguidas, que acho que ela se cansou e aí me deu um dicionário de presente, com dedicatória e tudo. Eu li esse dicionário por anos, tive ele até adulta. Então sempre digo que minha família estimulou demais a minha relação com a literatura e com as palavras. Já a minha primeira lembrança com a poesia, a mais marcante, foi de uma vez quando eu estava voltando da escola na garupa da moto de meu pai e eu disse para ele que estava aprendendo sobre poesia na escola, sobre Manuel Bandeira e o poema do porquinho-da-índia. Aí meu pai disse que ia declamar dois pedaços de duas poesias que eu ia adorar. E declamou “no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho” e “apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija”. Eu ri, fiquei com nojo, fiquei maravilhada. Foi aí que me apaixonei feito doida pela poesia. Para me descobrir como escritora foi uma caminhada nada linear. Desde que comecei a ler como hábito e como paixão, já comecei a escrever. Eu tentava escrever como Augusto dos Anjos e o máximo que conseguia era um amontoado de palavras que catava no dicionário. Isso ainda adolescente. Nunca parei de escrever, mas a ideia de ser escritora e publicar era totalmente não considerada. Na minha cabeça, era algo tão impossível que não era nem pensado. Só quando comecei a pensar em questões sociais, em feminismo, principalmente no feminismo negro, percebi que nunca tinha lido nenhuma escritora negra. Aí que as coisas mudaram. Porque li a primeira escritora negra da minha vida, Conceição Evaristo, e aí me pareceu possível que eu fosse escritora. Porque já não era um mundo feito só de escritoras com sobrenomes tais, de lugares tantos e que não se pareciam comigo em nada. Conheci outras autoras, até mesmo bem parecidas comigo, e isso realmente me fez entender que eu poderia um dia publicar. Por isso digo que foi uma caminhada nada linear, porque saber disso muda uma parte, mas não o todo, então eu tive que desbravar um monte de coisas. A sensação de “eu sou escritora” veio mesmo quando as primeiras pessoas compraram meu primeiro cordel e começaram a comentar sobre ele.

• Qual a importância e influência de seu avô, Abraão Batista, e de seus pais, na sua formação como leitora e escritora?
Meu avô é uma das pessoas mais artisticamente influentes na minha vida. Na literatura, ele não só é uma referência para mim como cordelista e poeta, como foi alguém que me presenteou com livros. Livros que dialogavam com questões minhas. Como uma vez em que eu estava com medo de atravessar a chácara no escuro e poucos dias depois ele me deu um livro sobre medo com a dedicatória “o medo é do tamanho que se faz”. Como xilogravador, sempre o admirei imensamente, é um grande artista. Até mesmo quando fui lançar meu livro na França, em todas as cidades por onde passei, tinha xilo e cordel dele em exposições. Meu pai também foi uma excelente influência, porque me mostrou a literatura rebelde, me mostrou poesia concreta, punk, nem aí, que falava em latrina, e cordel com título Os 500 anos que invadiram o Brasil. E também foi da estante dele que peguei meus livros favoritos de poesia na época, de Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski e Ferreira Gullar. Meu avô também fundou o Centro de Cultura Popular Mestre Noza, lá no Cariri, e cresci naquele lugar. Então hoje olho para isso tudo e penso que sorte eu tive. Foi muita sorte. Tenho que fazer algo com isso, sabe?

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“Quero construir as coisas pensando em como elas vão reverberar coletivamente.”

• O Brasil é um país mestre em empurrar para debaixo do tapete as diversidades, sejam elas raciais, ideológicas, religiosas e de orientação sexual. Como é ser mulher, negra e nordestina no universo literário amplamente dominado por homens brancos do Sudeste e Sul do país?
Há lados péssimos e lados maravilhosos. Os lados péssimos são os lados relacionados aos tipos de ofensas, exclusões e “pequenas” violências que se sofre. Já vivi muitas situações absurdas, é verdade, mas a maior parte das coisas que me deixa cansada e indignada está nas práticas recorrentes de exclusão. Como os eventos em que todos os convidados são homens, ou todos os convidados e convidadas são brancos, ou quando nordestinos são chamados sob uma ótica estereotipada. Entre outras coisas. E isso cansa de um jeito tremendo. Mas continuo discutindo tudo isso, porque, se eu não acreditasse ser possível transformar a sociedade, não escreveria. Pois então entram os lados maravilhosos. E ser quem sou me dá coisas incríveis, porque tem muitas outras pessoas parecidas comigo, ou que se identificam com o que falo, penso e escrevo, ou ainda que não se parecem comigo, mas que também acreditam em coisas similares, e esses encontros são lindos demais. Não tem nada mais recompensador do que escrever algo porque sei que não é apenas sobre uma carreira de escritora e encontrar pessoas que leem e caminham comigo nessa vontade de coletividade. Eu não sou sozinha, então muita coisa é possível.

• Em Redemoinho em dia quente você dá voz e vez a uma série de mulheres de vidas simples, muitas delas marginalizadas, mas de força interior e sabedoria impressionantes. Quem são essas mulheres, qual a importância delas na sua trajetória e como é transformá-las em literatura e levá-las para o mundo?
São mulheres do sertão do Ceará, do Cariri, minha terra. São mulheres inspiradas em mulheres que vi passar, também inspiradas em certos “arquétipos” de mulheres caririenses, mas sobretudo em mulheres do sertão cearense como elas são de verdade, sabe? Diversas de mil maneiras, pessoas de camadas. Essas mulheres escritas no Redemoinho são importantes para mim porque elas me ensinam histórias que não aprendi antes. Eu me mudei para o sudeste, fiz toda a minha vida, e só depois que fui entender minha relação com o Cariri e com as mulheres do Cariri, sendo eu também uma mulher do sertão, do Cariri. Escrever essas protagonistas foi muito bonito, foi importante para minha voz literária. Hoje sinto que me encontrei de um jeito filosófico. Isso não é possível, mas poeticamente falando. O Redemoinho me trouxe maturidade e compasso.

• Em Redemoinho é possível notar certa recorrência à queda de várias personagens que, muitas vezes, têm dificuldades em se levantar sozinhas ou ficam à espera de auxílio. Qual a relevância dessas quedas e o que elas podem evidenciar em seus contos?
Não tinha parado para pensar que tem bastante gente caindo. Levando em consideração que meu livro anterior se chama Um buraco com meu nome, acho que deve ter uma coisa aí, né? Agora pronto. Se alguém tiver uma interpretação, gostaria de ouvir. Num clube de leitura sobre o Redemoinho, um participante disse que interpretou um dos contos — o que tem um buraco causado pela chuva e um coitado cai dentro — como uma metáfora para depressão. Achei incrível, porque não escrevi pensando nisso, mas de que importa se eu pensei de propósito, vai que pensei sem querer?

• Senti em alguns de seus contos uma certa semelhança às mulheres de Clarice Lispector — vidas que não são vistas nem cuidadas pelo Estado, mas que falam muito sobre todos nós enquanto brasileiros. Você é leitora de Clarice? Esse sentimento de minha parte procede?
Eu fico bastante feliz quando sou comparada com escritoras e escritores dessa forma, muito obrigada. No caso de Clarice, nunca li nenhuma de suas obras, não tive acesso enquanto estava crescendo, depois quando passei a ter acesso a mais livros fui priorizando coisas mais contemporâneas. Mas acho que sua interpretação está certa para vários contos.

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“Se eu não acreditasse ser possível transformar a sociedade, não escreveria.”

• Já em Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis você traz de volta à vida mulheres importantes da nossa história que foram relegadas a um esquecimento seletivo. Como foi o processo de pesquisa sobre todas elas? Você percebe que, hoje, seu nome também passa a ser referência para uma legião de mulheres que escrevem e que ainda recebem muitas portas fechadas na cara? Como é para você se tornar uma referência?
O processo de pesquisa foi difícil, porque o pouco material a respeito delas era de difícil acesso. Pedi ajuda para bastante gente para encontrar trabalhos acadêmicos e também contei com pessoas do movimento negro. Mas foi um processo bonito, de preenchimento, de sentir que eu estava fazendo algo útil e necessário, usando o que eu sabia fazer para algo que era maior do que meu próprio ofício. Sempre repito que se eu tivesse conhecido essas mulheres negras enquanto crescia, na escola, muita coisa na minha cabeça teria sido diferente. Então o que eu esperava e ainda espero é que esse livro continue cumprindo esse papel de romper barreiras e contar a nossa história como deveria ter sido contada. E, olha, para mim é muito complicado me pensar como referência. Isso é algo tão complexo para mim que já pensei em mil formas de falar sobre isso e nenhuma me parece boa o bastante. O que sei é que quero construir as coisas pensando em como elas vão reverberar coletivamente. Quero fazer coisas que importem de alguma forma.

• Em As lendas de Dandara você trabalha elementos mitológicos para dar vida a uma mulher forte, determinada e que poderia tranquilamente ser colocada ao lado do próprio Zumbi dos Palmares em relevância histórica. Qual a importância desse trabalho na sua trajetória como escritora e como foi a receptividade desse livro especificamente?
As lendas de Dandara foi o meu primeiro livro, foi também a primeira vez que eu escrevi prosa, e não sabia que ele seria um livro “para todas as idades” quando estava escrevendo-o. Eu era totalmente inexperiente, já tinha sucesso com a literatura de cordel, mas um livro era algo completamente novo. As lendas de Dandara me obrigou a aprender tudo que eu sei hoje sobre ser escritora. Também foi com ele que aprendi a trabalhar com as redes para divulgar meu trabalho e, juntando isso ao fato de que esse livro era mesmo necessário, como eu sabia que era, ele esgotou em poucos meses — independente, vendendo só pelo meu site. Depois que ele foi para uma editora e que outros livros meus vieram, ele continuou me levando além. Foi meu primeiro livro traduzido para outra língua, o francês, e eu fui lançar na França em várias cidades. Também vai virar um especial na televisão. É um livro que não acaba, que já teve muitas reimpressões e que se encaminhou sozinho para seu público. Ele é bem diferente do meu estilo de escrita de hoje, mas, sei lá, ao mesmo tempo ele está escrito exatamente como precisava ser escrito, porque ele tem um tom de lenda, que é a proposta toda da coisa. Então acho até que tudo deu certo do começo ao fim, como se tivesse que ser. Claro que isso não existe. Mas que coisa, né?

• O que a fez deixar Juazeiro do Norte e se mudar para São Paulo? Como é a sua vida na maior cidade do país, como foi a adaptação e do que você mais sente falta da sua terra natal?
Vim morar em São Paulo porque meu trabalho como escritora já estava dando muito certo. Eu recebia muitos convites, mas nem sempre os eventos tinham orçamento para as passagens e hospedagem. E pensei que vivendo em São Paulo seria bem mais fácil, até porque as coisas acontecem no Sudeste, tudo parte daqui, e as passagens que saem de São Paulo para os locais próximos também são mais baratas. Apesar dessa centralização, gostei muito de vir para cá. Amo morar aqui, tenho o privilégio de trabalhar em casa, o que com certeza aumenta os níveis de sentimento positivo, e nem considero que teve adaptação, parece que já vim pronta. Problemas mesmo só tive com casos de discriminação, vezes em que pessoas de São Paulo riram do meu sotaque ou concluíram coisas a respeito de mim por causa dele. E o que mais sinto falta do Cariri com certeza é o deboche que usamos nas expressões faladas e a comida. Eita tristeza!

• Foi na capital paulista que você criou o Clube de Escrita para Mulheres, espaço no qual, entre outras coisas, encoraja seus pares a escreverem e a compartilharem seus textos entre si. Fale mais sobre esse trabalho e a relevância dele num momento político em que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”?
Criei o Clube da Escrita Para Mulheres em 2015, logo depois de publicar meu primeiro livro, pensando em ter um grupo em que mulheres que escrevem ou querem começar a escrever possam fazer exercícios de escrita, compartilhar o que criam, ler umas para as outras e receber apoio, sem que ninguém ali mate seus planos, sem que ninguém exija uma voz que não é sua, um ritmo que não é seu. Não tem uma hierarquia ou professora, a gente escreve junta. Eu e a Anna Clara de Vitto mediamos apenas por uma questão de ter sempre alguém para organizar, mas a ideia é todas juntas e construindo. A partir do Clube, várias participantes já publicaram. E o Clube é um projeto de extrema importância porque é um espaço para mulheres. É uma iniciativa de fortalecimento feminino, de organização e direta interferência das mulheres na literatura e na sociedade.

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“O que mais sinto falta do Cariri com certeza é o deboche que usamos nas expressões faladas e a comida.”

• Recentemente, você passou a fazer a curadoria do selo Ferina. Como tem sido essa vivência de garimpar novos talentos literários que, assim como você, estão por aí à espera da grande chance para sacudir a literatura brasileira contemporânea?
É incrível publicar escritoras inéditas e também editar. Editei os dois livros lançados, depois do meu, e foi maravilhoso trabalhar junto com as autoras. A Ferina tem essa característica de aproximação, principalmente pela compreensão de tudo que envolve ser uma escritora que está publicando pela primeira vez, ser mulher no mercado editorial, muitas vezes — como no caso das autoras publicadas pela Ferina — ser nordestina, negra, lésbica. Eu me sinto imensamente feliz, agradeço a Lizandra Magon de Almeida, editora da Ferina e da Pólen, por sempre abraçar projetos que importam.

• Qual é (ou quais são) os seus atuais livros de cabeceira? O seu preferido? E aquele título que recomenda fortemente?
Atualmente estou lendo A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura, de Toni Morrison. Meu livro preferido é A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade. E recomendo fortemente O diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus.

Redemoinho em dia quente
Jarid Arraes
Alfaguara
128 págs.
Antonio Munró Filho

É formado em Jornalismo e Letras pela PUCRS. Atualmente, cursa mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC-Rio.

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