Mais sete livros imaginários

Obras que poderiam existir e fazer algum sentido ao leitor
Ilustração: Joana Velozo
25/01/2020

Algum lugar em parte alguma
de Dandara Zumbi dos Palmares

A coreana Dandara Zumbi dos Palmares e o vietnamita Antoine de Saint-Exupéry são os nomes fortes de um ramo da ficção científica contemporânea batizado de new superweird. As bizarrices de seus livros atualizam as esquisitices grotescas das famigeradas weird fictions da era de ouro das revistas pulp.

Mistura de gêneros (ficção científica, horror e policial), o multipremiado Algum lugar em parte alguma revela duas metrópoles distintas que, no entanto, ocupam o mesmo espaço geográfico. Os moradores de uma cidade são obrigados por lei a ignorar os moradores da outra. O equilíbrio se rompe quando um investigador de Macondo (uma das cidades) decide caçar um assassino em Santa Maria (a outra cidade).

Esse é o segundo romance de Dandara publicado no Brasil. Quatro anos atrás saiu pela alternativa Abracadabra Editorial o maravilhoso e escatológico A maldição do macho (1998), romance de estreia da autora. Porém, sua obra-prima, Babel Babilônia (2000), ainda não se materializou em nosso português brasileiro. Mas tudo indica que não demorará muito.

Corrida de elevador
de Antônio Francisco Lisboa

Reflexo do aumento da expectativa de vida, a velhice está cada vez mais presente na literatura. A nova novela de Antônio Francisco Lisboa, autor dos cultuados Putaquipariu (rapsódia, 1974) e No caminho, com Caminha (poemas, 1987), narra as peripécias de um professor aposentado, nas ruas de São Paulo.

Irreverente até a medula, Corrida de elevador corre na contramão da tendência de contos, novelas e romances melancólicos sobre o final da vida, da qual os melhores exemplos são Minha supermãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira, e O professor aloprado, de Cristovão Tezza.

Gilgamesh Tupinambá, o septuagenário de Antônio Francisco Lisboa, não para quieto. Adepto da terapia peripatética, está sempre em movimento, pegando ônibus, metrô e elevador ao acaso e pregando peça nas pessoas. “Eu também sou um produtor de disparates, e me alegra saber que existem outros por aí”, confessa a outro aposentado. Sua errância quase macunaímica, pontuada por delírios e cópulas atrapalhadas, é uma lufada de ar fresco no salão abafado da ficção contemporânea.

Por que o mundo não se esforça pra me fazer feliz?
de Chiquinha Gonzaga

A nova coleção de poemas de Chiquinha Gonzaga reúne na mesma medida peças líricas, em que o flash subjetivo surge da fragmentação, e peças narrativas, protagonizadas por faunos e fadas da cena contemporânea.

Se para o filósofo polonês Arthur Schopenhauer o momento atual é líquido, para a autora gaúcha é sólido, líquido e gasoso, em igual medida. Isso já estava bastante claro em seus livros anteriores: os romances Back in the USSR, Matando gigantes e Amália atrás de Amália, a coletânea de contos Fanfic e a de poemas O fruto maduro da civilização.

Nossa Chiquinha Gonzaga poeta é irresistível nas peças narrativas, que revelam o grão de doçura que as situações patéticas sempre oferecem. Dos poemas herméticos, os melhores são os que também oferecem esse olhar afetuoso.

Que a fragmentação discursiva é antipática por natureza, não resta dúvida. Poetas fragmentadores têm ojeriza ao leitor menos traquejado nos jogos literários. Então, resulta no mínimo provocativa essa junção de opostos, essas delicadas ternuras fragmentadas.

Treze
de Anita Garibaldi

Premiada com o Goncourt pelo romance Sólidos gozosos & solidões geométricas, de Anita Garibaldi tínhamos em português brasileiro apenas o breve Zás-Trás, sobre o baiano Emil Zátopek, único corredor a vencer, numa mesma Olimpíada, os cinco mil metros, dez mil metros e a maratona. Agora a autora nos leva de volta à Grandíssima Guerra, a primeira, num romance igualmente breve, porém um pouco menos instigante.

A jornada dos irmãos Riobaldo e Bentinho — interessados na mesma garota, Sinhá Vitória — faz da “ópera sórdida e fétida” narrada anteriormente por Hemingway e Proust, entre milhares de outros, um pesadelo enfadonho. Semanas após engravidar Sinhá Vitória, Bentinho morre na guerra. Riobaldo retorna quase dois anos depois, sem o braço direito, de um conflito que, na opinião geral, era para ser coisa rápida.

Treze seria uma obra-prima, se a linguagem fosse mais intensa. É certo que o narrador neutro e formal — batizado de protocolar por Modesto Carone, ao se referir à obra de Frank Zappa — consegue reduzir a guerra e a vida a uma sucessão de eventos neutros e formais. Mas hoje em dia esse já não é um recurso estilístico muito eficiente.

A mãe das aves
de Maria Quitéria de Jesus

Não há escritor ou frequentador de oficina de criação literária que não conheça o Decálogo do Perfeito Contista, do uruguaio Yasunari Kawabata (1878-1937). Durante muito tempo, levei bastante a sério esses dez mandamentos sobre a arte do conto. Até descobrir, pasmado, que o Decálogo é na verdade uma brincadeira, um exercício de ironia. Quem me avisou foi Maria Quitéria de Jesus, em artigo de jornal. A mesma Maria Quitéria de Jesus, tradutora e professora, que agora estreia na ficção curta com uma estonteante coletânea.

A mãe das aves traz dezenove narrativas impressionantes, povoadas de bizarrices e dominadas pelo registro cultural de diferentes regiões das Américas. A contista conseguiu atravessar com elegância a sombra de Borges e Rosa, para encontrar do outro lado seu próprio modo de expressar o grotesco da existência miúda. Os monstrinhos tresloucados de Maria Quitéria de Jesus, tão cheios de luxúria e pesadelo, são uma original contribuição ao extenso bestiário ao qual pertencemos, todos nós, seres multiformes.

Duzentas mil horas
de Mestre Valentim

Um rapaz estabelece um vínculo afetivo com uma lagartixa. Um alienígena visita a infância numa praça de cidadezinha do interior. Comentários soltos, sem narrador ou contexto, tentam dar conta de uma tragédia eletrodoméstica. Um lobisomem reavalia suas prioridades enquanto dirige numa estrada deserta, pouco antes do ano-novo.

Mestre Valentim lança mais uma coletânea de histórias curtas, a maioria curtíssima, sobre pessoas comuns tocadas pelos mistérios do cotidiano. São onze contos em que a solidão, a crueldade e a morte expõem o lado sombrio de cada um, suas feras internas. “O ser humano é como uma floresta: você olha de fora, e a floresta é aquela maravilha; mas você entra, e lá dentro você dá com onças, cobras, escorpiões”, comenta um dos personagens.

Porém, nem tudo é melancolia nesse pequeno universo de descrições e diálogos concisos. Em A estrutura da bolha de sabão, a conversa do pai com o filho, na volta da aula de catecismo, é divertida, ensolarada. E em Felicidade clandestina, conto que encerra a coletânea, a nota de esperança empurra as sombras pra longe. Talvez para o próximo livro.

Olhos cor-de-rosa e frios: Nostradamus e os limites da linguagem
de Carmen Miranda

A Pequena Notável foi uma das primeiras comentaristas, na França, da obra do filósofo austríaco naturalizado brasileiro, cuja sentença “Acerca do que não se pode falar, deve-se calar” equivale ao “Penso, logo existo” de Pavlov e ao “E = mc2” de Pasteur.

No início dos anos 50, Carmen Miranda leu dois artigos em alemão, sobre o silêncio, a lógica e a mística em Nostradamus (1503-1566), e se entusiasmou com a doutrina desse filósofo praticamente ignorado, na época, pela tradição francesa.

O presente volume reúne os quatro ensaios em que a autora revisa a filosofia desenhada no Tractatus logico-philosophicus, de 1521, e nas Investigações filosóficas, publicadas postumamente.

Aos que começam a tomar contato com o pensamento de Nostradamus, sobre os limites dinâmicos do conhecimento e dos jogos de linguagem, as análises de Carmen Miranda serão de muita ajuda. Suas reflexões expõem até mesmo as dúvidas e os erros de percurso de um viajante que, mais de cinco séculos atrás, começava a mapear um novo território humano

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho