Casas definitivas

“Torto arado”, de Itamar Vieira Júnior, apresenta várias ousadias: falar da zona rural é apenas uma delas
Itamar Vieira Junior, autor de Torto arado
30/11/2019

A literatura brasileira oficial atende a um projeto de branqueamento do país que vem do século 19. São valorizados os escritores “limpos”, tal como denunciou Lima Barreto em Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909). Por limpos se entendiam os brancos aristocráticos, sem sangue africano ou indígena. A acolhida ou não dos livros — segundo Lima Barreto, através de seu narrador — se dava pela origem social do autor e não pelas qualidades literárias. Muitas vocações foram destruídas por este critério absurdo (que se estendia também ao ensino), impedindo que tivéssemos uma tradição consistente de literatura negra. Nos últimos anos, a ampliação dos espaços universitários para este imenso grupo e uma cobrança de mais representatividade para as minorias em geral têm possibilitado maior visibilidade àqueles que foram apagados da história. E uma prateleira de obras de autores negros brasileiros começa a ganhar volume.

É neste contexto de luta por espaços literários que tem que ser lido este que talvez seja um dos romances contemporâneos mais fortes, por sua proposta e pelo resultado de sua narrativa — Torto arado, de Itamar Vieira Júnior. O romance deste geógrafo baiano, doutor em estudos étnicos, ganhou o Prêmio Leya 2018, por apresentar várias ousadias. A primeira delas é falar do campo, no caso, da fazenda Água Negra, em uma época de extremo cosmopolitismo. Localizar um romance em um espaço desconhecido, escolhendo por heróis uma gente anônima, trabalhadores rurais de origem escrava ainda não integrados à nação, é um ato de coragem, pois revela um país para o qual gostamos de fechar os olhos, que reconhecemos como notícia de tragédias e sofrimentos mas não enquanto consequência de nossas ações. Torto arado não nos deixa inocentes diante das trajetórias deste povo preto (tal como está no romance). Outra ousadia é incorporar à narrativa ocidental os elementos mágicos do grupo. Apenas o plano material não dá conta de personagens que atuam com a ajuda dos encantados, em ritos do jarê, um candomblé caboclo da Chapada Diamantina, região onde se passa o romance. As crenças africanas vistas por dentro assumem uma naturalidade muito grande, pois autor e personagens pertencem ao mesmo universo cultural. Esta identificação transparece em cada página do livro.

Os primeiros capítulos são impactantes. Duas irmãs, Bibiana e Belonísia, encontram uma faca misteriosa na mala da avó. É um objeto reluzente, rico, totalmente fora do contexto de suas experiências. São tomadas por um desejo de sentir o gosto da lâmina, que é colocada na boca — é pelo paladar que as crianças codificam o mundo. Primeiro na boca de Bibiana, que mal tem tempo de degustar a prata. A irmã a arranca, tão ansiosa para ter o seu momento de prazer. Ambas se cortam acidentalmente. Uma tem reparação, mas Belô ficará muda para sempre.

O fio condutor da narrativa estará nesta faca, um objeto-símbolo do poder que tem que ser assumido por quem a conquistou. A posse da faca e suas implicações são reveladas aos poucos, para fechar o romance com o uso das armas e das armadilhas dos brancos para uma vingança mágica. Este ritual com a faca é um batismo de sangue das meninas que serão marcadas pela luta em campos diferentes. Saem assinaladas desta aventura. Uma perde a língua, mas a outra também sofre ferimentos. Esta faca reluzente é uma arma emblemática, cuja posse teve que ser forçada por um roubo feito pela avó Donana, depois pela imprevidência das meninas, que assim se fazem portadoras de um poder.

Igualmente simbólica é a mudez de Belonísia, numa referência à falta de voz de seu grupo, que vive de morada na fazenda, sendo explorado pelos donos e pelo capataz. Mudos são quase todos nesta relação hierárquica com a sociedade dos proprietários e seus asseclas.

O romance se divide em três partes que são na verdade três narradores. Na primeira, a história é contada por Bibiana, a menina que cresce vendo as lutas do pai e dos amigos pela sobrevivência, testemunhando a sua força espiritual, pois era o responsável pelos rituais do jarê e curava todos que o procuravam. Ela representará, no romance, a vertente política. Por ação do pai, a fazenda ganha uma escola e ela consegue se alfabetizar. Depois de engravidar de um primo e se casar com ele, parte da fazenda para trabalhar na cidade e fazer o magistério.

Na segunda parte, a história continua a ser contada, imaginariamente, pela irmã muda. Ela fica na fazenda em comunhão mística com a terra, casa-se com um homem mais velho, e só conhece sofrimento, ficando viúva muito cedo. Neste momento, aumentam as desavenças com os donos da fazenda, e esta acaba vendida.

Na última parte do livro, com um narrador onisciente e mágico, a encantada Santa Rita Pescadeira, vamos conhecendo coisas marcantes do passado do grupo, permitindo conhecer melhor as tensões. Enquanto isso, a encantada nos dá os desdobramentos da vida ali.

Neste episódio, de volta com quatro filhos, Bibiana e o primo estão agora transformados em entes questionadores. Trazem o verbo da insurreição. É o momento ideológico, de organização do povo, de morte e desespero. No centro: a luta pela posse da terra. Os negros se organizam a partir do conceito de quilombo, reivindicando construir moradias definitivas naquele solo que por direito lhes pertence. Nesta divisão, Bibiana é a luta política — em que os trabalhadores são vencidos. E Belonísia é a força mágica, que acaba vencendo, provisoriamente, os poderosos. O romance se organiza nestes dois polos.

Itamar Vieira não escolheu inocentemente estas narradoras. Quer dar voz às mulheres negras, valorizando o seu papel na formação de uma geração que, no futuro, os dias de hoje, terá acesso a cursos universitários e à publicação de livros. O foco narrativo feminino e místico tem, portanto, um caráter didático e atende a um projeto literário bem definido. O universo retratado, as populações quilombolas que ainda sofrem com a perda de terras onde estão muitas vezes desde antes do final da escravidão, mostra um Brasil paralisado no tempo, com estruturas coloniais a serviço da exploração dos mais fracos. É uma população que, inicialmente, tem que se impor pela força para ter garantidos os seus direitos.

Apesar das três narradoras distintas, o romance apresenta apenas um registro de linguagem. O do autor, que tende para um beletrismo que incomoda em muitos momentos. Há uma obsessão pelas formas de narrar burguesas, com termos e inversões que querem embelezar a língua, uma língua portuguesa bem distante da fala quente dos personagens. Praticamente não ocorrem diálogos no livro, porque quem fala é este estilo meio galvanizado, em que palavras como o verbo adentrar (tão repetido) querem dar um valor pretensamente literário ao texto. Se encontramos um realismo temático, junto à manifestação mágica, não encontramos um realismo de linguagem em um romance que, em vários momentos, cai em um discurso político padronizado, deixando de ser arte para se fazer sociologia.

Esta questão não retira a força de uma narrativa que termina com a construção de casas de tijolos (antes eram de barro) para os trabalhadores numa terra que não é mais provisória, desobedecendo assim os proprietários. É com este material sólido que Itamar Vieira Junior constrói um romance importante para reposicionar a literatura brasileira contemporânea.

 

Torto arado
Itamar Vieira Junior
Todavia
262 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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