Vingança através da arte

Niki de Saint Phalle transformou-se em artista para sair da condição de vítima
Ilustração: Aline Daka
30/11/2019

O impulso criador acontece para o bem e para o mal — já disse alguém. Com arte, a humanidade atingiu seus momentos mais sublimes, mas igualmente fermentou pesadelos. E há, em volta de certos temas complicados, um trato oscilante em que navega o(a) artista: pode usá-lo para submergir em loucura ou, ao contrário, consegue virar o assunto em trampolim, do qual sairá livre. Esse tipo de exorcismo não deixa de ser uma vingança por meio da arte.

O caso de Niki de Saint Phalle talvez seja um dos que mais impressionam, pela agressividade. A sua série dos Tiros ultrapassa a fronteira da catarse para se tornar denúncia, e no seu São Sebastião, especialmente, temos um sentimento de horror misturado ao respeito pela potência simbólica. Numa tela, vemos uma camisa masculina, engravatada, suja de tinta e perfurada por pregos. Um alvo ocupa o lugar da cabeça, e ali os visitantes foram convidados a atirar dardos. Não era a primeira vez que Niki polemizava; aos 13 anos, pintara de vermelho as folhas de videira que cobriam os órgãos sexuais das esculturas decorativas no pátio da escola Brearly. O episódio fez com que ela tivesse de ser transferida, embora devesse mesmo era entrar em tratamento psiquiátrico, conforme a diretora. O pai a havia estuprado dois anos antes.

Niki transformou-se em artista para sair da condição de vítima. Em suas anotações, confessou: “Bem cedo eu decidi me tornar uma heroína. Quem eu seria? George Sand? Joana d’Arc? Napoleão de saias? Eu não me pareceria contigo, mãe. Eu passaria a vida a questionar”.

Seguiram-se muitos outros trabalhos urgentes: o seu King Kong, de 1962, que é uma verdadeira guernica com colagens, e também as suas Nanas, tão pops quanto os bonequinhos de Keith Herrings (que aliás conheceu Niki e chegou a ser seu hóspede). Na altura em que se via famosa por estes símbolos de uma feminilidade farta e festejável, no fim da década de 1970, Niki concebeu seu Jardim do Tarô. Era uma forma de revisitar Gaudí, mas com seus próprios monstros.

Sophie Calle, outra francesa, nascida vinte anos depois de Niki, igualmente utilizou-se do tarô. Na obra Où et quand?, seguiu as instruções da vidente Maud Kristen, viajando pelas cidades que estavam previstas nas cartas concernentes ao seu futuro. Mas foi com um tipo diverso de carta que ela concebeu uma obra de expurgo: Prenez soin de vous.

Calle, já uma artista consagrada na época, convidou 107 mulheres de várias profissões a “traduzirem” o conteúdo da missiva escrita por seu ex, que por este meio terminou o relacionamento que mantinham. As interpretações reviram o perfil do amante covarde. Criam, além disso, uma rede de força através da identificação solidária — e mostram como o gesto de exibir uma afronta (em vez de escondê-la envergonhadamente) é um rico modo de ultrapassá-la. Isso também faz a artista cearense Marília Oliveira (que, coincidentemente, pesquisou a obra de Calle, numa dissertação de mestrado). Em dois de seus trabalhos, ela transita admiravelmente entre temas de abuso sofrido, sem jamais perder a poética.

Em Remissão, ela se fotografa sob pedras, flagrando o próprio corpo soterrado, esmagado sob essa fisicalidade que simboliza diferentes tipos de violência contra o feminino. A proposta, que é a um tempo catalogação e performance, nasceu da decisão de recolher uma pedra para cada assédio sofrido nas ruas de Fortaleza: “Para cada humilhação pública, medo de estupro, mudança de rota por medo dos homens que vinham na direção oposta, traria para casa uma pedra. De janeiro a junho, uma montanha delas se avoluma em caixas e sobre meu corpo nu, desvelado à força, desnudado de assalto, em dias de trabalho, em domingos de feira e praia”.

Você mereceu surgiu, conforme a autora, “sob a ameaça de ter fotografias de momentos íntimos publicados nas redes sociais, em 2016”. Após o fim desse relacionamento que pretendia empurrá-la para a condição de vítima, ela elaborou uma instalação composta, dentre outros elementos, pelas imagens com as quais fora ameaçada.

Mais recentemente, Todos são felizes nas fotografias parte de um álbum dos anos 1940, adquirido num mercado de pulgas no Chile. Marília Oliveira reconstrói narrativas subjacentes ao retrato de pessoas desconhecidas, em poses sorridentes e pacíficas. Adiciona, às folhas do álbum, pequenos textos que parecem explodir com o vigor dos segredos domésticos. “A culpa é sua”, “Você desperta o que há de pior em mim” são exemplos dessas frases de brutalidade cotidiana, sufocadas sob a aparência.

Embora nesta iniciativa a artista não utilize a autoimagem ou uma experiência imediatamente pessoal, percebemos o mesmo intuito de contar a “história de agressões corriqueiras”. E, afinal, pouca diferença faz, se a referência parte de si ou do alheio. O esfacelamento de uma fronteira entre o público e o privado está sempre posto, numa arte, digamos, de vingança — e toda criação é produto íntimo, ainda que a intenção do(a) autor(a) disfarce esse dado. Por um lado, reconhecemos o elemento catártico; por outro, a absoluta necessidade de usar materiais vividos, para elaborar uma obra, qualquer que seja a sua linguagem.

Nessa prática, a vingança pode ser pessoal ou coletiva; não importa que ela revire desafetos íntimos ou políticos. Igual é o sentimento de satisfação por dominar o tema, atingindo um resultado paradoxal de altruísmo. Sim, porque dar a uma pessoa medíocre espaço numa obra de valor, usar as suas características vis para criar uma reflexão interessante, é torná-la útil, é fornecer ao inimigo algo que ele jamais alcançaria sozinho — a imortalidade estética. Nesse sentido, o(a) artista é um beneficente.

Mas talvez seja melhor desconsiderar esse efeito positivo para ambos, sujeito e objeto de vingança. Vingar-se pela arte é uma estratégia muito mais terapêutica e visceral. Egoísta mesmo. De um egoísmo de sobrevivência.

Enquanto houver algum elemento que gere impedimentos para um(a) artista fazer alguma coisa, seja atingindo o seu processo criador, seja incomodando certa área de sua existência, a revanche acontecerá. Ela simplesmente não pode ser evitada. Discreta ou escandalosa, a resposta fermenta de diversas maneiras — contra a feiura e a falsidade, contra a gente obtusa que vive de repetir e propagar regras, contra o lixo, a barganha, a pobreza de espírito, a ganância… façamos arte. Façamos.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho