Instruções urgentes para sobreviver aos tempos de guerra (2)

O sono e uma possível vida saudável em tempos sombrios
Ilustração: Conde Baltazar
30/11/2019

Na coluna do mês passado, falei de um material utilíssimo editado pelo Ministério Churchill, em 1943, How to keep well in Wartime [Como ficar bem durante a guerra], de autoria de um prestigioso médico inglês, especialista em saúde pública: o dr. H. A. Clegg. O folheto destinava-se a ajudar a população a manter-se saudável durante o período da guerra, o que implicava sobrevivência e bem-estar individual, mas também esforço coletivo para enfrentar a guerra duríssima contra o eixo nazifascista.

Pois bem, daquela vez, traduzi somente o primeiro capítulo, que tratava da regra de ouro para conservar a saúde em meio à catástrofe da guerra: manter regularidade nos hábitos vitais. Aí ganhava especial importância a recomendação de ir ao banheiro todo dia pela manhã, a fim de que as pessoas não se deixassem tomar pelos humores deletérios das fezes acumuladas, transformando-se em tipos enfezados, hostis aos outros e a si mesmos.

O segundo capítulo, que traduzo agora, refere-se às horas de sono necessárias para adultos e crianças. O título é direto: Durma o suficiente.

Eis então o que diz o experiente Dr. Clegg:

É possível que você comece mal o dia por terminar mal a noite isto é, por ir para a cama muito tarde. É verdade que algumas pessoas precisam de menos sono do que outras. Mas o adulto médio deveria tentar dormir oito horas toda noite; assim, se você levanta às 6 da manhã, tente estar na cama, com as luzes apagadas, às 10 da noite. Uma noite por semana de plantão junto ao Corpo de Bombeiros ou ao Alarme Antiaéreo não vai lhe fazer mal se você compensar o sono perdido durante a semana.

As pessoas que têm dificuldade para dormir são frequentemente as mesmas que têm dificuldade para relaxar. Elas são muito tensas, muito inquietas, muito nervosas. Se você acha difícil cair no sono, pode ser que você tenha “algo na cabeça” uma preocupação doméstica, alguma ansiedade com dinheiro ou com a saúde. Tente descobrir o que é, e então tome medidas para resolver o assunto que o está preocupando. De todo modo, não se preocupe com coisas que você não pode mudar.

A esta lição de bom-senso e pragmatismo diário, o Dr. Clegg ainda ajunta “algumas dicas que podem ajudar aqueles que sofrem de insônia”. São as seguintes:

Se você trabalha em ambiente fechado todo dia, uma caminhada de um quarto de hora antes de ir para a cama pode lhe dar uma sensação agradável de relaxamento mental que irá rapidamente levar ao sono. Algumas pessoas precisam de um banho quente, outras de uma bebida quente (mas não chá ou café) na hora de ir para a cama. Outras, ainda, têm sono ao ler um livro de preferência um livro mais enfadonho, não de histórias policiais.

Pelo visto, dr. Clegg amava histórias do gênero giallo, o que nos revela um traço simpático de sua personalidade científica. Seria adorável explorá-lo um pouco mais, mas é preciso seguir com instruções mais imediatamente úteis:

Você não vai conseguir dormir facilmente se estiver muito quente ou muito frio. E você não dormirá de modo saudável se as janelas estiverem fechadas. Então abra bem as janelas, com qualquer tempo (menos quando houver névoas muito densas), antes de ir para cama, e conserve-se quente usando mais cobertores, ou mais roupas, ou mesmo um sobretudo.

Manter as janelas abertas — o que, na guerra do Brasil, como sabemos todos, é especialmente difícil — é um complemento necessário à ideia de dormir. O sono abafado, a cabeça tapada, sem portas por onde entrar o ar, não significam sono, mas entorpecimento. Para o dr. Clegg, os friorentos não têm desculpas para não abrir a janela: “Pessoas que sentem frio nos pés devem usar meias”. Só pede atenção para a economia, já que vivem um período de racionamento: “Uma bolsa de água quente, lembre-se, significa maior consumo de combustível —, a menos que você coloque a sua chaleira num fogo já em uso para aquecer ou cozinhar”.

Mais uma dica fundamental: “O barulho é outro perturbador de sono, como sabe quem já esteve no turno da noite. Tampões para os ouvidos, ou algodão e vaselina ajudarão a afastar o barulho”. Os ouvidos devem ser cuidadosamente protegidos do barulho, ainda que seja o do puro besteirol das transmissões nazistas que parasitam a frequência das rádios cristãs. Persistente como certas bactérias hospitalares, o ruído estridente pode levar à insônia, outro tópico importante do folheto do dr. Clegg. A respeito dela, como distúrbio geral do sono, ele diz:

Alguém em sua família pode sofrer seriamente de insônia, e se sentir mal por isso. Nesse caso, procure o conselho de um médico. E não perca o sono preocupando-se com o que o médico irá pensar de você se o procurar. Claro que, em tempo de guerra, ele estará mais ocupado do que usualmente e lhe agradecerá toda consideração que lhe dispensar, mas o Regime Nacional de Seguro de Saúde foi inventado justamente para tornar mais fácil o benefício do aconselhamento quando você realmente precisa dele.

É verdade que, em nossa guerra atual, o regime previdenciário baseado na solidariedade está sendo furiosamente desbaratado pelas hordas inimigas, o que reduz muito as margens de contar com aconselhamento adequado para a população. Seja como for, alerta o dr. Clegg, não se pode abdicar de cuidados dobrados com as crianças:

Crianças precisam dormir mais do que os adultos porque elas gastam muita energia durante o crescimento. No verão, com horas a mais de luz, os pais têm dificuldade de levar as crianças para cama. Mas lembre-se deste quadro:

Idade em anos         Horas necessárias de sono

1……………………………… 14-16

2-3…………………………. 12-14

4-5…………………………. 10-12

6-10………………………. 10-11

11-16……………………. 9 ½ – 10

Poucas coisas são mais importantes para uma criança do que a quantidade certa de descanso e sono, e pais modernos costumam deixar os filhos acordados até tarde. Então é preciso ser firme nesse assunto.

E o dr. Clegg finaliza o segundo capítulo com um último alerta:

Verifique se a cortina no quarto das crianças está bem colocada de modo que não esteja claro demais. Disponha as camas de maneira que as crianças durmam com as cabeças afastadas da janela. Depois que elas estiverem dormindo e está escuro, você pode abrir as cortinas a fim de que mais ar possa entrar no quarto.

A lição número 2 poderia ser resumida, portanto, pela ideia de que a resistência em tempos de guerra começa pela conquista de uma boa noite de sono. Nisso, o dr. Clegg está de acordo com o dito siciliano: Il letto è uma buona cosa: lì si dorme o si riposa [A cama é uma coisa boa: ali se dorme ou se repousa]. Em suma: nada de perder o sono por conta do foguetório nazi. Um quarto simples, dotado de temperatura equilibrada, escuro e silencioso, com boa refrigeração interna, parece pouco, mas é fundamental para preservar o tipo de fibra necessária para encarar o mau tempo.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho