Vidas apagadas

Em romance de estreia, Daniela Kopsch investiga os abismos sociais do Brasil a partir de uma tragédia real
Daniela Kopsch, autora de O pior dia de todos
30/11/2019

O título diz muito. Anuncia algo ruim. O pior dia de todos, de Daniela Kopsch, publicado em 2019 pela Tordesilhas, tem o massacre de Realengo como pano de fundo. A autora, jornalista, cobriu o caso em abril de 2011.

É certo e prudente o cuidado de Kopsch com a escrita. Afinal, deseja não tornar ainda mais dolorosa a lembrança de sobreviventes, parentes e amigos do pior dia de todos. A literatura, nesse caso, é conveniente ao permitir a criação de personagens para espelhar a realidade a ser sempre considerada.

Kopsch apresenta as circunstâncias de vidas de pessoas envolvidas no massacre de Realengo. E o faz pela ficção, após, certamente, se valer de uma cuidadosa observação de suas realidades, tendo em vista as minúcias da narrativa do subúrbio carioca. Porém, ao ficcionalizar, valendo-se da narrativa em primeira pessoa, manipula a sensibilidade do leitor para temas atuais.

Mas o livro está longe de ser apelativo. Não toma, por exemplo, a pobreza como esteio para a condução da narrativa — a solidariedade, por exemplo, se sobrepõe. De jornalístico, não há nada mais do que dados e relatos coletados em entrevistas, transformados, agora, em literatura ao serem incorporados entre personagens que compõem a história de Malu e Natália. Com a condução em primeira pessoa, não apresenta o estranhamento dos protagonistas quanto a outras realidades, distintas das do subúrbio, da escola pública carioca, das casas empilhadas em ruas com vizinhos barulhentos — “Nosso bairro era quente e barulhento. Quando a música de um vizinho incomodava, outro colocava seu aparelho de som em volume ainda maior”.

Tanto é que a violência do atirador na Escola Municipal Tasso da Silveira, no dia 07 de abril de 2011, não é arguida de modo veemente pelas personagens por meio de uma análise sociológica. O grande questionamento a nortear a maior parte do livro refere-se muito mais à perda de familiares e amigos no triste episódio. Ou seja, Kopsch em momento algum propõe uma reflexão das protagonistas quanto às circunstâncias promotoras da violência generalizada na capital fluminense. Essa é a sua realidade. Ela está dada. Foge-se, assim, às previsíveis lições de superação tão enfatizadas pelo politicamente correto.

A tudo isso, tem-se a delicadeza do olhar de Malu, da infância à adolescência. Ao incômodo com a inoperância da segurança do Rio de Janeiro, sobrepõe-se a tristeza da perda de sua querida prima. E toda a reflexão passa, então, para o impacto da violência nas vidas individuais, em cada um daqueles diretamente envolvidos na trama. Deixa-se de lado o discurso panfletário, de tom político — obviamente, também relevante. Paralelamente, chama-se a atenção do leitor para pequenas grandes coisas, como a vida de cada um dos atingidos diretamente pela tragédia — e quantas tragédias equivalentes não ocorrem no cotidiano das grandes cidades?!

Kopsch reconstrói as vidas das pessoas do subúrbio carioca. Vai da infância à adolescência. Toma o habitual, o crescimento, apresenta as dúvidas pessoais, relata as descobertas do amor, sofrimentos familiares — Malu é abandonada pela mãe, sendo criada por Rosana, sua tia, genitora de Natália, prima de mesma idade. Por isso a pobreza a circundar suas vidas não é relatada de forma apelativa. Não há pedido de ajuda; tampouco lição de moral. E, por mais que não se dirija diretamente ao Estado, faz sugestões ao leitor.

Realidade
O pior dia de todos é literatura. Fundamenta-se na realidade. Circunda o já dado universo de desamparo de meninas e meninos estudantes da escola pública carioca. De modo sutil, sensível, apresenta dilemas, desejos e, sobretudo, inocência. Em meio a tudo isso, os desafios que, conforme relata, sabe-se lá se serão superados. Vivenciados, certamente.

O livro descreve um tema bastante sério através de uma delicadeza evidenciada nas pausas. Feitas na medida certa, sem se alongarem demais, alocam o olhar da personagem principal. Através de Malu há a interpretação de um mundo aparentemente simples — porém, em suas minúcias, mostra-se complexo. O leitor é convocado a entrar na cabeça de Malu por meio de um conhecimento mínimo do Brasil contemporâneo e sua desigualdade, sentindo o impacto na construção de sua personalidade. As pausas deixam isso ainda mais evidente por sentenciarem a percepção da narradora, fugindo ao conclusivo.

O chão naquele dia estava seco, e a poeira criava uma nuvem vermelha em torno de nós. Eu corri, caí, ralei o joelho, voltei a correr, consegui chegar até Marcela e a agarrei. Aquele dia inaugurou uma longa relação entre nós. Nunca mais voltei a ver Marcela feliz.

Aqui, o leitor distancia-se do caráter de mero espectador, tal como a grande mídia normalmente prevê que o seja — ainda mais em se tratando de um caso de ampla cobertura nacional e internacional, como o foi há alguns anos. Eis a evidência da destreza da autora, evitando transformar toda a sua história em um relato apelativo.

Malu, com pai desconhecido, criada no seio do conservadorismo da família evangélica com os tios, desvela progressivamente uma visão particular sobre a sua realidade. Há notável capacidade de julgar. E, diferentemente da visão vulgar que se tem sobre a religiosidade em circunstâncias como essa, apresenta uma solidariedade outrora inimaginável, como quando Natália, sua prima, após ganhar mil reais em um prêmio literário juvenil opta por gastar o dinheiro comprando uma TV para sua colega de classe que vive em extrema pobreza.

Não se trata de romantização da periferia. Tampouco em tentativa de alçá-la a produto cultural. Isso é ainda mais evidente ao se tomar a maneira sentenciadora, novamente, reforçado pelas pausas da narrativa. Assim, a obra abre a perspectiva do leitor em seu compromisso de continuar a reflexão iniciada na escrita.

Entretanto, fica-se a impressão de que não é qualquer um que lerá O pior dia de todos. O envelhecido e descascado muro amarelo retratado na capa elaborada pela Tordesilhas, com o resplandecente azul do céu ao fundo, tendo em primeiro plano a menina com o clássico uniforme de estudante de escola pública carioca, encolhida, de braços cruzados, quase se protegendo, ao mesmo tempo em que abraça o material escolar, remete às cores da bandeira do Brasil. O livro, com o trabalho de capa de Amanda Cestaro, a partir da foto de Paul Bucknall, demonstra como o tema da desigualdade brasileira é bem mais profundo. Kopsch pergunta sobre como ele toca no pessoal. Não há como ser redentor — é reflexivo.

O Brasil se revela nos complexos olhos das Malus e Natálias. Suas trajetórias na infância e adolescência não poderiam deixar de lado o sonho da profissão futura e o anseio por entrar em uma universidade pública. Tais sonhos estão de mãos dadas com o desconhecimento sobre as dúvidas e possibilidades de que isso realmente ocorra — universidade pública seria para ricos. Elas, atentas ao seu mundo, conhecedoras in loco da desigualdade, vivenciam seus limites mais do que qualquer um.

Dizer que um dia é o pior de todos, de alguma maneira, significa atenção especial aos acontecimentos cotidianos. É autoridade em dizer que todos os outros são melhores. As personagens, em grande medida, são exatamente isso. Observadoras, a elas nada escapa. E, com a lente da vivência do subúrbio da desigual sociedade carioca, veem tudo. Mais uma vez, eis a relevância das pausas em sua capacidade de sentenciar. Nem mesmo o nascimento de um pintinho, animal cativante para uma criança, escapa a isso. Quando pensa em ajudar a retirá-lo do ovo, em suas primeiras bicadas, sob a galinha acocorada no quintal da amiga Bruna, Malu ouve: “Ele tem que nascer sozinho”.

Nascer na periferia de uma das maiores cidades do Brasil, amparado ou não por uma família, por uma religião, por uma rede de solidariedade (e embora tudo isso), é, certamente, nascer sozinho. Vivenciar todos os conflitos daí advindos, é vivenciá-los sozinho. Para Kopsch isso é de vital importância.

A segunda metade da obra tende a explorar mais os impactos do pior dia de todos em Malu, a personagem principal. Ela, sempre afeita a Natália, sofre com a perda da prima-irmã-melhor-amiga. A partir de então, Kopsch direciona para uma outra perspectiva. O livro torna-se mais introspectivo — talvez até como forma de apresentar os danos da violência sob um prisma distinto, geralmente inalcançável pelo jornalismo. Os capítulos são mais longos. Os períodos também. O sofrimento de Malu quanto à perda e à vivência desse dia tornam-se o centro da narrativa. Das descobertas, passa-se ao fato dado. Na verdade, em termos de escrita, aparenta ser uma obra descolada daquilo apresentado na primeira parte. De alguma forma, isso destoa para o leitor. A impressão é a de que as duas metades foram confeccionadas em momentos distintos da vida da própria autora.

Não há obra perfeita. Como dito antes, deve-se ressaltar a dificuldade em se conduzir um tema tão complexo. Fazê-lo com delicadeza e sem ser ofensivo é algo extremamente complicado. Porém, à prudência, não há indulgência — o que é muito bom.

Aos poucos, o livro retoma as pausas para se mostrar sentenciador. E isso se faz evidente no esforço de Malu em retornar ao mundo demolido no pior dia de todos, restando viver sobre os cacos. O saldo final é o de uma obra delicada, que merece muito a leitura.

O pior dia de todos
Daniela Kopsch
Tordesilhas
257 págs.
Daniela Kopsch
Jornalista, especializada em mídias digitais, cobriu a tragédia de Realengo e, ao entrevistar meninas sobreviventes do massacre, começou a escrever O pior dia de todos, seu primeiro romance.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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