A vida, ritos de passagem

Conto inédito de Cunha de Leiradella
Ilustração: Thiago Lucas
29/10/2019

1.
O velho chamava-se Mateus. Mas todos o conheciam por Dianho. O Dianho da Serra. Porquê, poucos o sabiam. E quem o sabia não dizia. Dianho era o diabo, e o diabo, todos o temiam. Magro, a pele da cara e das mãos curtida pelo vento, pela geada e pela neve, chancas de couro cru e samarra forrada com pele de ovelha, no inverno, nas outras estações, botas soladas de pneu e casaco de cotim, colete e calças de bombazina, chapéu de aba larga, bigode e barba cerrada, era homem de poucas falas e ainda de menos amigos.

Uns diziam-no filho do velho abade de Fafião, lá para os lados de Salamonde, outros juravam-no filho dos lobisomens de Brufe, lá para os lados de Vilarinho das Furnas. Mas a certeza ninguém a tinha. Morava num cortelho de pedra, alapado debaixo de um penedo, nas quebradas da serra do Gerês, com um cão, o Finório, e uma coruja-do-mato, a Pitosga, que lhe tinha entrado pelo postigo há dois anos, ferida numa asa, e por lá ficou, caçando ratos.

Morrera, diziam, já passado dos setenta, embora o corpo nunca fosse encontrado, quando a barragem do rio Homem inundou Vilarinho das Furnas, sepultando na água e no silêncio as casas da aldeia e as tradições comunitárias. Vivia de contrabando e de caça, e levava fama de ter andado na Guerra Civil Espanhola, camarada dos populares. Mas a certeza ninguém a tinha. Depois da morte do Quina Felizardo em Montalegre, num domingo de manhã, já os apanhistas, os farristas e os pilhas de volfrâmio tinham desaparecido da serra, as minas dos Carris abandonadas, nunca mais ninguém o viu. Ou, ao menos, disse que o tinha reconhecido. Mas poucos se aventuravam a passar pela porta do cortelho abandonado, não fosse o Dianho aparecer, navalha de ponta e mola ou espingarda na mão, a pedir meças aos passantes.

2.
O pico da Nevosa mal se vê, envolto em nevoeiro. É fim de madrugada, a neve caiu de noite, puxada pelo vento, e a brancura estende-se pelas encostas. O gelo ainda não faísca nos penedos e nos charcos, nem os gaviões voam por entre o carvalhido, atentos aos ratos e aos coelhos que se aventuram fora dos buracos e das luras. Nem as águias nem os falcões planam nas alturas, olhos fixos em tudo que se mexa e possa servir de alimento. Os lobos e as raposas já se encaminham para os covis, e só os javalis e os corços ainda vagueiam nos chavascais. Os cavalos garranos, acossados pela neve, há muito desceram aos vales e se acautelaram nos baixios. O silêncio cobre as encostas e a solidão envolve tudo. Pedras, árvores, homens e animais.

Devagar, o velho desce o carreiro, as chancas ferradas enterradas na neve, jatos de vapor a sair-lhe pelo nariz e pela boca, a velha espingarda Victor Sarasqueta, dois canos, calibre 12, na bandoleira, cartucheira de zagalotes na cintura, e o cão, o Finório, lá na frente, a farejar o rasto da caça. Precisa de matar um corço, ou um javali, e defumar a carne para passar o pico do inverno. Já ultrapassa os sessenta, as pernas magras, mas ainda firmes, levam-no a Vilar ou Randín, às vezes até Paradela, na Espanha, se lhe morre o cão, falta tabaco ou pólvora, roupa e petróleo, ou até pedras para o isqueiro de mecha. Montalegre, Boticas ou Caldas do Gerês, em Portugal, foi tempo. Em Portugal, os bufos ainda ganham a vida a denunciar amigos e inimigos à PIDE, e morrer por morrer, morra-se ao menos em terra aberta.

O velho encosta-se ao tronco dum carvalho, à beira do carreiro, tira a onça de tabaco e as mortalhas do bolso do colete, enrola um cigarro, sopra as chispas da pedra na mecha do isqueiro, acende-o, dá uma passa profunda e um punhado de neve cai ao chão. O velho nem o olha. Conhece a serra. Sabe que é uma ave rompendo voo, encosta abaixo, à procura dum abrigo na mata mais cerrada. Dá outra passa e olha o pico da Nevosa lá em cima, ainda enevoado, com a fronteira espanhola a passar rente ao cume, na encosta do outro lado. Cospe na neve e olha a lonjura dos cumes da serra.

Sempre que cá passo alembro-me de Verín, andava a guerra civil na Espanha, tempos do catano aqueles, alembra-me uma vez, íamos nós, o Quina Felizardo mais eu, o Passadiço, o Zé da Micas, o Louvadeus, o Amieiro e o cabrão do Galego, um tal Zica, um estupor dum cagarola que até medo da sombra o gajo tinha, sacos de Mausers às costas para ajudar os populares, a entrega aprazada numa tasca, e quilhou-se tudo, a guardia cerca a tasca, o cabrão do Galego atira-me o saco ao chão, é fugir, rapaziada, é fugir, que nos matam a todos, o Passadiço passa-lhe a mão às goelas, nem mais um pio, ó meu caralho, o gajo caga-se todo, mas cala-se, e digo eu ao Quina, ó Quina, ele seria o quê, hã?, se calhar foi denúncia, diz-me ele, e agora?, diz o Amieiro, recuar não podemos, diz o Quina, entramos a matar?, diz o Louvadeus, a ver vamos, diz o Quina, e ali ficamos, o estupor do Galego a bater os dentes, e diz o Quina, alguém vá ver uma porta que se possa abrir, vou eu, digo-lhe eu, e vou num pulo e venho noutro, há lá uma, digo ao Quina, e lá fomos, fomos, e foi entrar o último e eu bater a porta, e a primeira bala dos guardias estala na madeira, e vemo-nos todos numa sala, as mulheres todas de mãos postas, umas em camisa, outras sem nada, e o Quina vai à janela e volta, e eu, que se passa, ó Quina?, a puta da guardia cercou-nos, diz-me ele, e se pegam fogo à casa?, nã, queimar as raparigas, isso eles não queimam, são putas e eles precisam delas, diz-me ele, aquele Quina era um homem como poucos, a guerra civil da Espanha foi um tempo do catano, uma pessoa matava ou morria sem saber, o que era feito era feito, mas a verdade ninguém a dizia, dizia-se que os populares capavam os padres e emprenhavam as freiras, mas dizer que os falangistas metiam os populares nas praças das câmaras e matavam-nos como tordos, os caras de caralho a pular e a rir-se, isso ninguém dizia, eu também matei, lá isso é verdade, mas nunca matei por gosto ou por matar, só matei para não morrer, e aqueles caralhos matavam por tudo e por nada, como quem canta ao desafio, só por mangação, ó Quina, era o Zé da Micas, e a casa ao lado, hã?, abre-se um buraco na parede, e prontos, aquele Zé era um camarada dos tesos e era o único que sabia ler e escrever, parece que tinha andado para padre num seminário de Braga, la casa al lado tiene patio trasero?, era o Zé da Micas a perguntar a uma das raparigas, e ela a acenar que sim, e ninguém deu mais palavra, três Mausers de baioneta calada, e num triz abre-se um buraco, e o Quina entra, e volta, e pela cara que trazia via-se que a coisa tinha dado para o torto, safamo-nos?, digo-lhe eu, a ver vamos, diz-me ele, tu e o Zé e o Zica ficam com as raparigas, os outros vão comigo, e foram, foram, e eu e o Zé abancamo-nos num sofá, e o Galego, só o Quina o tinha por Zica, o Galego encosta-se à porta e diz-me o Zé, o que é que tu me dizes, ó Mateus?, safamo-nos ou não?, safamo-nos, pois, digo-lhe eu, o Quina não mete prego sem estopa, pá, nunca se sabe, diz-me ele, eu nunca tinha visto aquele Zé fugir fosse do que fosse, mas as mãos tremiam-lhe tanto que pareciam até varas de salgueiro verde, alguma coisa havia ele de ter, se calhar seriam as raparigas, que naquela vida havia alturas que uma pessoa passava semanas sem mulher e uma pessoa nunca sabe de onde lhe vem o medo, e diz-me ele, ó Mateus, não seria melhor eu dar um pulo lá fora, a ver?, ó Zé, digo-lhe eu, lá fora o Quina dá conta, mas não seria melhor eu lá ir?, torna o Zé, estás com medo ou quê, pá?, medo eu não tenho, diz-me ele, então que se passa?, nada, diz-me ele, é que, e não disse mais, que o Galego põe-se à frente das raparigas, a pular e a rir-se, e diz-nos, vamos a elas, rapaziada, que é para isso que elas servem, cala-me essa boca, ó meu caralho, diz-lhe o Zé, e o Galego a rir-se, bem se vê que vós não me conheceis, o que é que o Passadiço te disse, hã?, digo-lhe eu, eu quero que o Passadiço, e o filho da puta manda-me um palavrão que Deus me livre, põe o chapéu à banda e atira-se às raparigas, pega numa das nuas e começa a apalpá-la de tal maneira, que a rapariga cai ao chão, e o cabrão a rir-se e a fazer tudo para lhe abrir as pernas à força, e ela a chorar e a cruzá-las, e o cabrão prega-lhe duas estaladas, aquilo bole comigo de tal maneira, que me levanto e deito a mão às goelas do cara de caralho e puxo-o como quem puxa um porco, mas o gajo solta-se num repelão e vem para cima de mim de navalha na mão, ai caralho, quando eu vejo o tipo de navalha na mão, pego a minha ponta e mola, e zás, anda, cabrão, salta para cá se os tens no sítio, meu cara de caralho, o gajo, finório, põe-se à espera, o Zé ajuda a rapariga a levantar-se e ela, ao passar, passa na frente do tipo, e que faz o cabrão?, agarra-se a ela e passa-lhe a navalha nos peitos, mas foi a última coisa que fez na vida, ai foi, foi, caiu ao chão, redondo como um tordo, a garganta aberta de lés a lés, eu limpo a navalha e meto-a à cinta e digo ao Zé, foda-se, Zé, menos um cabrão neste mundo, mas ele nem me ouviu, a rapariga a berrar, toda banhada em sangue, um peito cortado em dois e as outras a querer fugir e o Zé no meio delas, ó chicas, ó chicas, e eu pego nela ao colo, toda banhada em sangue, acamo-a ao sofá, tiro a camisa e enlaço-lhe o corte, a coisa acalma-se e, nisto, começam os tiros, primeiro os das Mausers, depois o ra-ta-ta-ta-ta da metralhadora, de seguida, mais tiros das Mausers, a metralhadora cala-se, e depois um tiro só, isto um quarto de hora bem passado, e o Zé vai à janela e volta, e diz-me, não se vê ninguém lá fora, ó Mateus, se calhar a puta da guardia matou os nossos, ó Zé, digo-lhe eu, se nós demos os primeiros e os últimos tiros, os guardias é que se lixaram, pá, o Zé olha-me e começa a pular e a rir-se, e eu tiro a onça do tabaco e as mortalhas do bolso do colete e enrolo um cigarro e o Zé enrola outro, e damos duas passas que nos souberam pela alma, e uma das raparigas vem até nós de mãos postas, pucho? pucho? como quem diz, cigarro? cigarro?, que naquela altura na Espanha faltava tudo, até tabaco, quem quisesse fumar, se fosse mulher abria as pernas aos falangistas ou aos guardias, se fosse homem, ou dava o cu ou bufava os amigos, pucho? pucho?, dizia a rapariga de mãos postas, e postas de tal maneira que eu dei-lhe logo ali o meu cigarro e ela dá-me duas passas tamanhas que acaba com ele, e que faço eu?, pego a onça do tabaco e as mortalhas e dou-lhas, e ela a chorar e a dizer, muchas gracias, muchas gracias, e entra-me o Louvadeus e o Quina, e o Quina vê o cabrão do Galego estirado, banhado em sangue, e diz-me, ele o que foi, ó Mateus?, e digo-lhe eu, teve que ser, ó Quina, o cabrão cortou os peitos à rapariga, fizeste bem, pá, diz-me ele, fizeste bem, era meu sobrinho mas era má rês, e tu fizeste bem, pá, não te aflijas, e os guardias?, diz-lhe o Zé, matamos sete e três fugiram, diz-lhe o Quina, e dos nossos?, digo-lhe eu, bem sei que o Quina não era gajo de deixar um camarada ao deus-dará, mas há ocasiões e ocasiões, e há ocasiões que o diabo tece-as bem tecidas, o Passadiço cortado a meio pela metralhadora e o Amieiro com dois tiros, diz-me ele, filhos duma grande puta, diz o Zé, e ela?, diz o Quina, virado para a rapariga desacordada no sofá, safa-se, digo-lhe eu, e o Quina vira-se para o Zé e para o Louvadeus e diz-lhes, ide na frente e levai os sacos, e o Zé e o Louvadeus começam a carregar os sacos e o Quina mete a mão à carteira e põe cinco notas de cem duros debaixo da cabeça da rapariga e diz às outras, son para ella, e vira-se para mim e diz-me, vamos, e lá fomos, os sacos às costas, o Quina na frente e eu atrás, o Quina era um camarada como nunca na minha vida vi outro, atravessava a fronteira com um saco de cinco Mausers, trinta quilos bem pesados, contada a munição, sujeito a ser morto ou a tê-los queimados a ponta de cigarro pelos guardias, e com isso o mais que podia ganhar seriam quatrocentos duros, que vinham a ser duas mil pesetas, mais coisa menos coisa, três contos portugueses, um dinheirão que Deus me livre, naquele tempo, e dava-me mais do que isso a uma rapariga que nunca tinha visto na vida, um camarada destes dura pouco, e não durou, ai não durou, que o mataram em Montalegre, tempos depois, à falsa fé, à porta da cadeia, o Louvadeus, que tinha mulher e filhos, preso na feira por marralhar a compra duma gorra e ter dado duas labestadas ao cabrão do barraqueiro, que o chamou de ladrão, o Quina, jurado de morte pela guarda republicana portuguesa, a ver se o tira de lá, e chega-me um filho da puta dum cabo e atira-lhe dois tiros ao peito e arruma-se o andor?, então mata-se uma pessoa por querer salvar um amigo e ninguém quer saber?, ai ele é isso?, a ver vamos, e viu-se, ai viu-se, viu-se, eu mais o cão, o Finório, não este que agora tenho, mas o outro que tinha na altura, lá vamos nós por esses montes a caçá-los, e caçamo-los a todos como quem caça coelhos, cabo, guardas, tudo, todos pagaram os pecados e as mortes, que muitas deviam a Deus, e aqui ando eu agora, o Dianho da Serra, que eu bem sei que é desta maneira que me chamam, mas não me arrenego, ao fim das contas até vem a calhar, ninguém me aparece ao caminho a pedir contas, e aqui ando eu a caçar um corcito ou um javalito, que uma pessoa de fome é que não pode morrer, e cá vou andando até que Deus me chame e me peça contas do que fiz, que nada fiz a mais, a não ser ajudar a quem precisou e a quem sempre me ajudou, que de muita ajuda precisei nesta minha vida, de todos estes anos que já carrego às costas.

3.
O cão ladrou ao longe, à entrada da mata de carvalhos. Um latido agudo e curto, e calou-se. Era corço. Se fosse javali, ganiria. O velho tirou a espingarda da bandoleira, engatilhou-a e alongou o passo, não fosse o corço sumir-se no carvalhido. Viu o cão a arrastar-se na neve e parar, as orelhas em pé e os olhos fixos na mata. O velho chegou perto do cão e olhou também a mata. Cem passos à frente, o corço, a cabeça encoberta pelos ramos, retouçava uma mouta de giestas. Devagar, o velho aproximou-se, ajoelhou, fez pontaria ao meio da barriga e o tiro de zagalotes partiu. O corço caiu, a estrebuchar, o sangue sarapintando a brancura da neve. O velho, com a espingarda ainda em ponto de fogo, foi ver. Era fêmea. A mancha esbranquiçada nos quartos traseiros, em forma de coração invertido, não mentia. O cão latiu de novo, o mesmo latido agudo e curto, e calou-se. A cria, ainda com as manchas brancas no pelo, nascida no início do verão, corria ao encontro da mãe em saltos desajeitados. O velho abanou a cabeça, devagar, com tristeza. Era um pecado deixar um filho sem mãe morrer de fome e de frio naquela neve. O segundo tiro partiu e o corcinho tombou, morto a menos de vinte passos da mãe.

NOTA
Optou-se por manter a grafia vigente em Portugal, observando as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Cunha de Leiradella

Português de nascimento, residiu 47 anos no Brasil. É autor de vários romances, o primeiro, O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior, vencedor do Prémio Fernando Chinaglia 1981, e o mais recente, Apenas questão de qualidade, vencedor do Prémio Maria Ondina Braga 2015, já em Portugal. Publicou os contos de Turistas são os outros, vencedor do Prêmio Paraná 1990 e Fractal em duas línguas, vencedor do Prêmio Cruz e Souza 1995. É dramaturgo roteirista. O conto A vida, ritos de passagem pertence à antologia Pesca de arrasto, ainda inédita.

Rascunho