“Todo lugar é lugar de se morrer”

No romance "Paradeiro", Luís Bueno elabora um mosaico narrativo, com diferentes vozes, em que os personagens vivem situações-limite
Luís Bueno ganhou o Prêmio Biblioteca Nacional por “Paradeiro”, seu romance de estreia
12/10/2019

“Foi um processo de grande intensidade não apenas intelectual, mas de vivência mesmo”, diz o professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Luís Bueno sobre a produção de seu romance de estreia, Paradeiro (2018), lançado pela Ateliê e vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional deste ano.

Bueno, que é doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com uma enorme tese sobre os romances produzidos na década de 1930, tem inegável afinidade com as minúcias do mundo acadêmico, mas só agora enveredou para o terreno da fabulação. “Ao escrever o romance, experimentei na prática aquilo que todo professor de literatura fala, ou seja: uma obra não é nem forma, apesar do conteúdo, nem conteúdo, apesar da forma”, sentencia o autor de Uma história do romance de 30 (2006).

A sua primeira incursão pela ficção traz um tuberculoso, uma mulher com câncer que quer se matar e outra com Alzheimer. As histórias, situadas em São José dos Campos (SP) e parte na cidade litorânea do Guarujá (SP), colocam os personagens em situações-limite e tratam de questões que dizem respeito à vida. “É um romance que se debruça sobre a vida, uma coisa frágil, sempre ameaçada e de fim certo (porque virá) e incerto (porque não se sabe quando ou como) ao mesmo tempo”, diz o autor.

E foi encarando “um dos maiores desafios da criação literária”, a invenção da voz do outro, que Bueno elaborou duas vozes femininas e emulou o estilo epistolar da década de 1930 — território no qual, como se vê durante a leitura, o autor se sente bem à vontade. Nesses trechos, o autor revela a influência dos romancistas regionalistas em sua escrita, em especial de Graciliano Ramos, autor-fetiche do narrador tuberculoso.

Na conversa a seguir, concedida ao Rascunho por e-mail, Bueno se debruça sobre a questão tão atual do “lugar de fala”, discute o que aproxima e afasta os estilos acadêmico e literário de escrita, reflete sobre a disposição para leitura dos alunos do curso Letras, entre outros assuntos.

• Um tuberculoso, uma mulher com câncer que quer se matar e outra com Alzheimer. O que o levou a trabalhar esses temas mórbidos em Paradeiro?
De cara eu diria que todos os temas são válidos para a literatura, inclusive os mórbidos, não é? O tema é apenas um dos elementos que constituem um romance. Mas, no caso do Paradeiro, não sei bem se há morbidez. É verdade que os protagonistas do romance enfrentam essas condições duras, mas não sei se há algo de mórbido nisso. Tenho a impressão de que o livro apenas trabalha com situações-limite, com a iminência da morte ou da inconsciência em que essas doenças colocam as pessoas. Num romance policial cheio de ação, por exemplo, sempre há personagens correndo risco de vida, outras morrendo violentamente e o leitor não tende a entender isso como mórbido. As três personagens centrais do Paradeiro estão vivas, em etapas diferentes: uma velha, uma madura e outra bem jovem. As questões que elas enfrentam dizem respeito à vida. Olhando dessa perspectiva, é um romance que se debruça sobre a vida, uma coisa frágil, sempre ameaçada e de fim certo (porque virá) e incerto (porque não se sabe quando ou como) ao mesmo tempo. E vale a pena lembrar que doença não é necessariamente condenação à morte imediata. Como num romance qualquer, também no Paradeiro é preciso chegar ao final para ver se alguém morre.

• Por que escolheu São José dos Campos para ambientar as histórias do romance?
A história da cidade. Eu nasci e morei em São José dos Campos até os 20 anos. Assisti ao seu grande crescimento nos anos 1970 e 80, crescimento que apagou seu passado de cidade sanatorial, já que até a década de 1950 era uma cidade que abrigava instituições onde se fazia o tratamento da tuberculose, doença então fatal. Ou seja, era um lugar em que se ia muitas vezes para morrer ou, com sorte, para enfrentar a iminência da morte. Todo lugar é lugar de se morrer, é claro, mas uma cidade com essa história pode dar maior sentido a um romance povoado por personagens que se confrontam diretamente com a perspectiva do fim. Mas quero lembrar que uma das personagens, a dona Bibiana, embora tenha uma experiência fundamental em São José, vive no Guarujá, cidade litorânea que ninguém liga à ideia da morte ou da doença, dado ser um destino de férias, de lazer.

Discute-se hoje o “lugar de fala” na sociedade. Você emula duas vozes femininas no livro. Como enxerga essa questão? A literatura está sujeita ao policiamento?
A criação da voz do outro — seja de gênero, de classe, de etnia, de nacionalidade ou qualquer que seja — sempre foi um dos maiores desafios da criação literária. Desafio que, em um grau ou em outro, qualquer projeto ficcional precisa enfrentar. Esse desafio gera tanto problemas estéticos quanto éticos, mas sem essa dificuldade um gênero como o romance não existe. Romance é conflito de indivíduos e de valores, jamais põe em cena uma só voz e o autor precisa criar ficcionalmente aquilo que ele próprio não é. Isso para não falar naquelas vozes que, porque não se manifestam, marcam seus valores em negativo. No Paradeiro há duas vozes narrativas femininas e uma masculina. Em nosso tempo, a sociedade como um todo tem tomado maior consciência do problema que é a representação de um outro, e isso é positivo porque alimenta o debate. A literatura, assim como qualquer outra atividade exercida no espaço público, está e sempre esteve sujeita ao julgamento, a alguma forma de policiamento — institucional ou não. Mas, sendo algo natural, isso não deve intimidar quem se propõe a fazer literatura. Afinal de contas, assim como escritores e outros artistas podem cometer acertos e equívocos tanto estéticos quanto éticos em seu trabalho, as reações àquilo que os artistas fazem também estão sujeitas a equívocos. Esse é o debate que sempre interessará tanto ao escritor quanto ao crítico. A postura de condenação sectária de uma obra, seja por qual motivo for, em que tempo for, é uma distorção do debate de ideias que chama muito a atenção quando acontece, mas que acaba passando. Já faz tempo que as acusações de imoralidade lançadas contra livros como Madame Bovary (1856), de Flaubert, e As flores do mal (1857), de Baudelaire, ou os escândalos em torno das obras do modernismo, por exemplo, estão superadas. A gente tem que acreditar que o debate não se esgota num julgamento rápido.

• “Maus tempos estes em que vivemos”, diz o personagem Pedro a certa altura, referindo-se à situação política mundial do final da década de 1930. Cenários turbulentos são mais indicados para a produção literária?
Acho que isso é um mito. Num país como o Brasil, que viveu nos últimos 100 anos seguidos períodos conturbados, pode ficar a impressão de que os períodos de fechamento político foram diretamente responsáveis pelo florescimento das artes. Mas a verdade é que esses períodos vieram depois de outros, de abertura e de grande atividade intelectual. Os artistas que brilhariam durante os anos Vargas (o tempo do Pedro) e durante a Ditadura dos anos 1960 e 70 se formaram em períodos de grande efervescência intelectual. O resultado estético positivo das experiências artísticas não é favorecido pela dificuldade dos tempos. A qualidade da música popular brasileira dos anos 1960 e 70 se explica muito mais pelo amadurecimento da música urbana no país do século 19 e à Bossa Nova do que à Ditadura, por exemplo. Além disso, o presente, para quem vive, é sempre difícil, cheio de tensões pessoais e coletivas que se deslocam de um plano a outro dependendo das circunstâncias. Acima de tudo, não há tempos que sejam bons para todos.

• Os monólogos da Bibiana não têm pontuação e todas as letras são minúsculas. Há um intertexto aí com a parte final de Ulysses, o monólogo da Molly? Ainda: qual a influência dos clássicos contemporâneos na sua formação como escritor?É natural que o leitor, por causa da forma, compare os capítulos em que a Bibiana, já velha e com demência, tem seu pensamento expresso numa espécie de jorro verbal, com o monólogo que encerra o Ulysses. Mas também há diferenças, já que esses capítulos se alternam com outros, vamos dizer, convencionais, também relativos a essa personagem. E isso acontece porque as motivações são outras, Molly Bloom e dona Bibiana vivem situações muito diferentes. Não sei dizer o quanto há de influência direta, o que eu sei é que o Joyce é um escritor que eu li bastante. O próprio Ulysses eu já havia lido quando tinha uns 20 anos e depois até dei uma disciplina sobre ele na universidade, bem antes de escrever o romance. Eu tenho a impressão de que as múltiplas leituras, e não apenas as preferidas, participam da formação do escritor. A gente aprende no contato com aquilo que outras pessoas fazem, gostando ou não gostando, e não sei se sou capaz de apontar o que teve influência maior sobre minha experiência na ficção.

• Antes de estrear na ficção com Paradeiro, você publicou um livro de mais de 700 páginas sobre o romance de 30. Quais diferenças e semelhanças observa entre as linguagens acadêmica e literária?
Há grandes semelhanças. Embora o senso comum pense na escrita acadêmica como algo meio chato e automático, eu não acho que seja necessariamente assim. Para mim, escrever sobre literatura é uma atividade criativa, de reflexão e imaginação, além de obviamente ser um trabalho constante com a linguagem, com a expressão. O rigor acadêmico impõe um método ao qual a gente tem que ser fiel se quiser dizer coisas que façam algum sentido. Mas com a escrita do romance não acontece a mesma coisa? Além disso, não se faz pesquisa acadêmica nem romance sem um envolvimento pessoal radical — e se isso não acontece o que se faz resulta tanto num estudo burocrático como num romance burocrático. O que muda é que um texto crítico tem exigências e desenvolvimento diferentes dos de um texto de ficção. O modo de pensar e de criar é diferente porque a lógica da criação artística é diferente da lógica da produção crítica. Talvez a maior diferença de todas esteja no tipo de conclusão a que se quer chegar. Na linguagem acadêmica é desejável que se demonstre um ponto de vista específico, uma ideia clara sobre um objeto. A literatura imaginativa não tem que demonstrar nada, sugere muito sem dizer diretamente e estabelece várias relações indiretas entre suas partes. São combinações diferentes de razão e de intuição.

• Existe um grande autor ignorado da década de 30? E algum superestimado?
Não sei se há autores superestimados da década de 1930. Talvez Graciliano Ramos seja o único autor do período cuja avaliação, hoje em dia, é inquestionavelmente positiva. E quanto a ele, não considero que seja exagero. Para dizer a verdade, acho o Graciliano um autor maravilhoso. Com outros escritores a história é um pouco diferente. Depois de décadas de grande reconhecimento, autores como Jorge Amado, Erico Verissimo, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego hoje têm um prestígio crítico menor do que deveriam ter. Há também autores que, embora sejam considerados clássicos, ainda permanecem relativamente ignorados pelo leitor. Por isso, quem ainda não leu Cornélio Penna, Cyro dos Anjos, Lúcia Miguel Pereira, Marques Rebelo ou Amando Fontes deve ler para ver o que está perdendo e não sabe. Isso sem mencionar várias outras coisas, como as experiências de ficcionista de Jorge de Lima e o Parque industrial da Pagu, para ficar em dois exemplos, além de belos livros virtualmente desconhecidos, como Navios iluminados, de Ranulpho Prata, e Badu, de Arnaldo Tabayá. Enfim, há muita coisa dos anos 30 a ser descoberta.

• Como professor do curso de Letras da UFPR, percebe falta de interesse dos alunos pela literatura?
Nem mais nem menos do que há 30 e tantos anos, quando eu próprio fiz o curso de Letras. Nem todos os estudantes de Letras procuram o curso para estudar literatura, talvez nem mesmo a maioria. Mas é claro que vários o escolhem exatamente por causa da literatura. Assim, eu diria que nos cursos de Letras certamente se encontra mais interesse pela literatura do que na maioria dos outros ambientes sociais. O desinteresse pela literatura que vemos no Brasil, onde se lê menos do que em outros países, não é um problema de caráter individual nem geracional. Tem mais a ver com o que somos como país, com a nossa longa história de exclusão social. Por um lado, os mais pobres permaneceram analfabetos em massa, por décadas, e, dessa forma, supriram suas necessidades de vida imaginativa com outras fontes, que vão desde a cultura popular mais enraizada (a música, a poesia popular, as celebrações religiosas) até a programação dos veículos de comunicação de massa (programas de rádio, novelas de televisão, reality shows), sem passar pela literatura. Por outro lado, as elites, garantidas em sua posição pela imensa distância econômica que as separa dos pobres, muitas vezes não sentem nem sequer a necessidade ou o desejo de demonstrar algum tipo de cultivo da cultura letrada que as diferencie e, em algum nível, justifique sua posição. Essa é a combinação terrível que vivemos. Os jovens que frequentam os cursos de Letras vêm de vários estratos sociais e representam uma fatia importante da população brasileira interessada em literatura.

• Sendo um estudioso da literatura, que precisa se ater às minúcias técnicas, para você é mais fácil ou difícil produzir conteúdo autoral?
É difícil dizer porque só escrevi um romance depois de ser crítico, não sei como é a experiência daqueles que só se dedicam à literatura imaginativa. De todo jeito, acho que o estudo sistemático da literatura por um lado dificulta a produção do texto criativo porque dá pra gente uma consciência mais aguda das nossas limitações. Antes de fazer o curso de Letras e me profissionalizar na área, eu não escrevia ficção, mas poesia. Ao ler poesia mais e melhor, a autocrítica ficou hiperinflacionada e eu passei a ter grande dificuldade para finalizar um poema, quanto mais para publicar. Só depois de maduro consegui superar isso e concluir um romance. Por outro lado, todo escritor, para dominar seu ofício, precisa conhecer e manipular todo tipo de minúcia técnica, por meio da convivência com o texto dos outros, de maneira que a tarefa cotidiana, profissional, de se debruçar sobre o texto literário é algo que talvez facilite a empreitada criativa. Não que torne o processo fácil, pois ao escrever ficção a gente tem que fazer opções muito específicas o tempo todo, e estamos sujeitos a fazer escolhas erradas. Mas talvez aumente o repertório e amplie o leque de opções, sem eliminar o papel imenso da intuição no processo de criação.

• Essa aproximação mais técnica da literatura, como acadêmico, tira um pouco a “mágica” da coisa?
Isso só aconteceria se a motivação da escrita fosse a mera resolução de uma questão de técnica narrativa, por exemplo, uma aplicação de conceitos. Mas esse não foi o caso da escrita do Paradeiro. As trajetórias das personagens e seu enfrentamento daquelas situações-limite ao mesmo tempo tão parecidas e tão diferentes entre si — ou seja, aquilo que em geral se liga à vida e à magia da literatura — foram os elementos motivadores da escrita. É claro que ela só se viabilizou quando eu julguei encontrar uma solução técnica que me permitisse desenvolvê-la. Quando encontrei uma forma de articular as coisas. Dizendo de outra maneira, ao escrever o romance, experimentei na prática aquilo que todo professor de literatura fala, ou seja: uma obra não é nem forma, apesar do conteúdo, nem conteúdo, apesar da forma. É as duas coisas ao mesmo tempo, sem qualquer divisão hierárquica. Sem isso nenhuma mágica acontece. E, de minha parte, foi um processo de grande intensidade não apenas intelectual, mas de vivência mesmo. Não sei se foi mágico ou se eu produzi magia, só sei que foi uma experiência pessoal muito forte que eu espero que o leitor partilhe. A literatura pode produzir muitas formas de magia.

Paradeiro
Luís Bueno
Ateliê Editorial
300 págs.
João Lucas Dusi

É autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019).

Rascunho