Alteridade e compaixão

"Que tempos são estes" aborda a condição da mulher e antecipa temas como questões de gênero
Adrienne Rich, autora de “Que tempos são estes”
30/09/2019

O que seria o silêncio na obra de arte? E o que seria o ruído na arte? No ensaio A estética do silêncio, Susan Sontag defende que “a arte do nosso tempo é ruidosa, com apelos ao silêncio”. Ao mesmo tempo que a arte busca o silêncio, ela acaba por ser ruidosa, justamente por ser arte, por confrontar o status quo. Entre ruído e silêncio, entre o dito e não dito, entre grito e silenciamento, encontram-se muitas poéticas do século 20 como continuidades possíveis dos paradoxos da arte moderna. Esse desenvolvimento, no entanto, não se fez de modo uniforme. Encontramos na obra de Adrienne Rich, por exemplo, uma tentativa muito peculiar de criar ruídos e silêncios, tentativa esta que, felizmente, se tornou mais próxima do público brasileiro no ano passado, com a publicação de Que tempos são estes e outros poemas, coletânea traduzida por Marcelo Lotufo e lançada pela editora Jabuticaba.

Os nove poemas que integram o volume demonstram claramente a preocupação de Rich em trazer o cotidiano e outros temas aparentemente triviais para o debate acerca de sua posição na história e na sociedade. Sua produção poética, ainda pouco conhecida no Brasil, é extensa e variada, além de ser bem diferente daquilo que foi feito pelos seus pares contemporâneos, como os poetas da New York School. Ao mesmo tempo, sua obra dialoga, sim, com algumas poéticas feitas no mesmo período — e até anteriormente — em que publicou seus livros. É o caso das obras de Emily Dickinson e Elizabeth Bishop, por exemplo. Como Marcelo Lotufo ressalta na introdução da coletânea, a poesia é “um exercício de alteridade e compaixão”. Diria ainda que é um exercício tanto da poeta quanto de nós, leitores.

As composições presentes em Que tempos são estes parecem ser elaboradas sob esse princípio de alteridade e compaixão. Em A queima de papel em vez de crianças, poema de cinco partes, fica clara uma angústia em relação ao outro, quando diz que o “conhecimento do opressor/ esta é a língua dele”. No entanto, “preciso dela para falar com você”, paradoxo que se torna uma espécie de fio condutor do poema, dada a impossibilidade de “um tempo de silêncio/ ou de poucas palavras/ um tempo de química e música”. No “conserto da fala” parece existir uma esperança, mas se trata de uma esperança que nos leva a “um mapa dos nossos fracassos”, fracassos estes que surgem das descrições “inúteis” do amor e também da ineficiência da queima dos livros. A opressão e a língua do opressor persistem mesmo assim. Contudo, percebe-se como o pronome “você”, frequente nesse poema e em outros, só se refere a mulheres, com quem se quer de fato falar.

Esse poema, de 1968, vai ao encontro do dilema entre o silêncio e o ruído descrito por Sontag. A busca por um “templo” que, em certa medida, se assemelha àquele descrito por Stephen Spender, em seu romance O templo, e por W. H. Auden, em The orators. É uma “aventura compartilhada”, segundo Spender na introdução de seu livro, tal qual o “templo/ construído há mil e oitocentos anos” em que você “entra sem saber/ onde você entrou”. Uma diferença em relação aos dois autores ingleses talvez esteja no fato de que, em A queima de papel em vez de crianças e em outros poemas, Rich partilha o perigo que vivem ela e aquela em que diz não poder tocar, de forma mais incisiva que Auden, que, por coincidência, foi quem lhe outorgou seu primeiro prêmio, o Yale Younger Poets Award.

Condição da mulher
Por seu discurso no recebimento de outro prêmio, o National Book Award, em 1974, conseguimos observar a preocupação da poeta, partilhada com Alice Walker e Audre Lorde, em relação à condição da mulher, luta presente não só nas ruas, mas também em suas criações. Percebemos isso também em Uma mulher morta aos quarenta, poema no qual “todas as mulheres com quem cresci estão sentadas/ seminuas nas pedras/ no sol/ olhamos umas para as outras e/ não nos envergonhamos”. Dessas mulheres, uma se destaca, aquela que é “todas as mulheres que já amei e reneguei”, justamente aquela que tem “seus peitos/ cortados fora” e com a qual nunca falou “da sua morte no seu leito de morte”. Trata-se de um poema de caráter elegíaco, entre vida e morte, através do amor, de uma relação que parece se construir a partir de um todo (“todas as mulheres”) até uma parte, que não deixa de ser o todo (“você é todas as mulheres”). A noção de integração máxima entre o eu e o outro historicamente na poesia de Rich é nítida.

Já em Tempo norte-americano, fica manifesto como “nossas palavras ficam” e “tornam-se responsáveis por mais do que pretendíamos”, mas, apesar disso, ainda podemos “escolhê-las/ ou escolher/ manter-se em silêncio”. A alternativa do ruído, por se mostrar existente, devido ao “medo do uso que inimigos fariam” daqueles “temas já destacados para mim”, é o motor da criação poética de Rich. Diante da opção por “falar outra vez”, como no verso final do poema, a autora sempre se decide por continuar a falar, mostrar-se como voz necessária, disponível para o outro, ou melhor, a outra. Em Implosões, declara que também “queria escolher palavras pelas quais até você/ seria transformada”, demonstrando-se que, na ânsia por se comunicar e sair do silêncio, há uma luta nada fácil para encontrar um lugar, lugar este que, como em Mergulhar no naufrágio, está fora do “livro dos mitos/ no qual/ os nossos nomes não constam”.

Em sua poesia, tal luta é evidente. É uma luta com as palavras, para que elas lhe sirvam para seus propósitos poéticos, estéticos, enfim, políticos. No seu famoso ensaio Heterossexualidade compulsória e existência lésbica, Rich destaca bem como a vivência homossexual das mulheres é ignorada mesmo por algumas feministas. Nossa preocupação como leitores deve ser a de não a apagar também. Nota-se que, por tais motivos, Marcelo Lotufo buscou em sua tradução não suprimir as relações entre as mulheres, mostrando-se sempre atento, por exemplo, ao verter para o gênero feminino os pronomes, substantivos e adjetivos que, em inglês, são indeterminados fora de um contexto. Na poesia de Rich, o contexto é claro: a vivência e a convivência das mulheres estão entre seus principais tópicos. Tal preocupação pode parecer estranha para nós, falantes de uma língua que marca sempre seus gêneros. Nos textos de autoras brasileiras como Angélica Freitas e Natália Borges Polesso, a relação afetiva entre mulheres nos é bem manifesta, mas, por vezes, quando nos vemos diante da ambiguidade de outra língua, como a inglesa, podemos nos deixar levar pela heterossexualidade compulsória, descrita pela própria Rich.

Quanto à tradução, também é possível perceber como Lotufo conseguiu trabalhar em português com a fronteira instável da linguagem da poeta, que parece estar entre o coloquial e o não coloquial a todo tempo. No entanto, não fica claro quais foram seus outros critérios tradutórios, como o ritmo e o metro, em especial devido ao fato de o tradutor, em sua introdução, não fazer menção ao seu trabalho em si, atitude que provavelmente já acabaria com nossas dúvidas.

Vale a pena também mencionar que há outras versões de poemas esparsos de Rich, como as seleções feitas por Sarah Valle, pesquisadora da autora, para o blog de poesia, tradução e crítica escamandro, e por Ismar Tirelli Neto, para a revista modo de usar & co. Por essas traduções e pelas resenhas que a edição da editora Jabuticaba recebeu em diversos meios, percebe-se que felizmente a poeta está de fato sendo mais lida pelo público brasileiro. Em um momento em que a poesia e os leitores parecem estar mais atentos para a diversidade de poéticas que buscam seu espaço, a poesia de Adrienne Rich se mostra cada vez mais fundamental.

Que tempos são estes
Adrienne Rich
Trad.: Marcelo Lotufo
Jabuticaba
84 págs.
Adrienne Rich
Nascida em 1929, na cidade de Baltimore, em Maryland, nos Estados Unidos, foi uma poeta, ensaísta e feminista bastante conhecida em seu país, tendo recebido vários prêmios. Ao longo da carreira, publicou mais de 20 livros de poesia e ensaio, a partir dos anos 1960, destacou-se como importante ativista política. Morreu em 2012.
Daniel Falkemback

É professor, tradutor e doutorando em Letras na UFPR.

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