O fim da Europa

Michel Houellebecq deu à imigração um papel metafórico
Michel Houellebecq, autor de “Serotonina”
30/09/2019

2 de janeiro de 2018
Escrever resenha é cada vez mais difícil para mim. Este é um gênero que necessita de continuidade. Quando interrompemos a produção, a estrutura textual internalizada se apaga. E só a prática nos devolve esta programação interior. Temos uma espécie de sistema muscular na mente e na sensibilidade. Sem fortalecê-lo, ninguém escreve bem. E, para isso, são necessários, como no campo físico, exercícios contínuos.

27 de janeiro de 2019
Leitura de Plataforma, deste demônio do contemporâneo. Poucos autores olham o agora com um desencanto tão grande. Michel Houellebecq não perdoa nenhuma ilusão. O romance é uma análise dos tempos de movimentações turísticas, que ele escancara como fúteis e racistas. Usa trechos de catálogos de viagem, contrastando esta divulgação com a experiência vivida.

30 de janeiro de 2019
Terminei de ler Plataforma, de Michel Houellebecq. A metáfora da plataforma aparece uma única vez, no final do livro. O narrador, que tem o mesmo nome do autor, se lembra de um momento da juventude em que subiu em uma torre de alta tensão e contemplou o abismo. Poderia se atirar dali, mas, por medo de virar uma massa informe, permanece olhando friamente para o nada. É esta postura à beira do fim que marca todo o livro. O sentimento de tédio com as putas que dão prazer. A realização vivida com a mulher amada, adepta da prostituição, é interrompida por uma tragédia e ele permanece gélido. Lembra muito o tom de O estrangeiro, de Camus. Só na Ásia o sobrevivente solitário do amor encontra o prazer provisório com as profissionais.

Um livro corajoso que enfrenta sem idealizações o discurso do politicamente correto, criando um narrador que fala de sua condição europeia e masculina, alguém que tem dinheiro para pagar por sexo. A leitura deste livro exige uma suspensão da moralidade e uma adesão emocional ao drama do homem que se sente o estrangeiro extremo.

26 de fevereiro de 2019
Comecei a ler Serotonina, de Michel Houellebecq. Bom.

7 de março de 2019
Houellebecq me convoca para uma Europa solitária. É o escritor que deu à imigração um papel metafórico. Seus narradores em primeira pessoa querem sair com mulheres estrangeiras, o exótico funcionando como atrativo sexual. É uma visão machista, a da colonização europeia reduzida à metonímia da imposição sexual. As mulheres se entregam a tudo enquanto o homem europeu conhece alguma alegria. Se o imigrante funciona como uma engrenagem erótica, o europeu se vê como um desalentado. Não há reinos para manter nem impérios para conquistar. Apenas sexo pago. Em Serotonina, o narrador vai e volta, pela memória, ao rol das paixões falidas, à sombra do amor extremo dos pais, que se suicidaram juntos quando o pai descobre um câncer incurável. Importante: a mãe renuncia à vida em nome do amor, seja isso lá o que for. No mundo afetivo do filho — um agrônomo em crise —, nenhuma mulher estará disposta a este sacrifício, até porque as relações não duram. Ele as perde sistematicamente e vive sem morada fixa, outra metáfora para as relações passageiras. Serotonina é um grande romance contemporâneo. É cada vez mais raro ler um livro atual em que não há pose ou um desejo de agradar ao público e à crítica. Corajosamente, o autor chega ao extremo das relações egóticas. Não é uma obra para salvar o mundo, mundo aliás que nunca se deixa ser salvo, ou para diminuir nosso complexo de culpa. É antes uma narrativa para nos humilhar diante de nosso incurável egoísmo, nossa igualmente incurável solidão predatória.

17 de março de 2019
Terminei Serotonina. Um bom livro. A autodestruição pelo isolamento e pela depressão. O uso de remédios para se manter vivo, paralelamente ao drama do homem que perdeu o estímulo para viver e está reduzido à contratação de sexo. Há uma análise do momento histórico neste drama. O homem europeu não consegue mais impor-se como modelo mundial de virilidade, nem sexual nem econômica. O sexo com imigrantes e estrangeiras o fascina, pelo exótico, ao mesmo tempo em que interrompe a construção da França para os franceses. Os seus personagens, que não conseguem continuar um modelo de país, estão representados por Aymeric, o nobre que cuida de uma granja e se envolve em manifestações nacionalistas em prol dos produtores locais de leite, acabando morto. Socialmente, ele já estava morto havia muito tempo. Florent-Claude, o narrador, representa também uma trajetória em fim de linha. Não há mais a França e sim um entroncamento global de pessoas e interesses econômicos. A falta de um relacionamento amoroso do narrador tem função simbólica. É machista, encarnando o poder em declínio. Sem o sexo que tornaria sua vida mais suportável, resta a ele a dormência social e erótica conferida por uma nova droga (Captorix), que ele usa como último vínculo com o mundo. Sem amigos, sem parentes (os pais viveram uma história de amor impossível), sem namoradas, sem casa, sem emprego. E com dinheiro mais do que suficiente para viver bem o resto de seus dias. No final, ele assume um discurso religioso que revela o ocaso desta França. Florent-Claude se coloca no lugar de discurso de Cristo, lembrando da morte como forma de enfrentar os corações endurecidos.

No geral, ao livro falta narrativa. E sobram comentários. Muito bom, mas não chega a ser uma obra-prima como Plataforma. A desconexão das fases da vida do narrador atrapalha a leitura. Ele vai abandonando as pessoas e os episódios. Tem mais estrutura de novela do que de romance.

Serotonina
Michel Houellebecq
Trad.: Ari Roitman e Paulina Wacht
Alfaguara
237 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho