Um processo kaftiano

A bizarra investigação os gastos das universidades de São Paulo
Ilustração: Eduardo Souza
30/09/2019

Os deputados governistas da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) prometem escrever um Processo mais fajuto que o do Kafta brasílico: criaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) especialmente para investigar os gastos das Universidades públicas do Estado. A ideia em si mesma é esdrúxula, considerando o regime cada vez mais apertado em que vivem as Universidades brasileiras, de que não são exceção as paulistas. Nada deteve os deputados, animados pela aberta hostilidade dos governos Bolsonaro e Doria contra a ciência e a cultura. A hostilidade vai a ponto de o primeiro ter dito que eram as universidades privadas que mais produziam pesquisa no Brasil, o que contraria todos os dados a respeito, os quais creditam mais de 90% das pesquisas no país às públicas (ver, a propósito, o artigo de Sabine Righetti e Estevão Gamba, na Folha de S. Paulo, de 23 de abril, no qual se demonstra ainda que “USP, Unesp e Unicamp produzem, sozinhas, um terço de toda a ciência feita nas 198 universidades do país”).

Diante de uma posição tão deliberadamente mentirosa e destrutiva, já se podia esperar que os ataques não conheceriam limites estabelecidos pelos fatos, pela razão ou pela mais modesta sensatez — três fontes de saber notadamente desprezadas pelos dirigentes da “nova política”, cuja novidade é exatamente esta: a de negar fatos, argumentos e ainda o simples bom senso com a certeza de que não há nada mais convincente do que a ignorância compartilhada.

O documento de aprovação da CPI, abertamente inconstitucional e desprovido de objetividade, não se dava ao trabalho de tipificar a irregularidade a ser investigada. O caráter vago do documento fez com que a deputada Beth Sahão (PT) apresentasse mandado de segurança já em 23 de abril contra a abertura da CPI, pois não foram apresentados os requisitos legais previstos para a sua existência, o que a tornava “manifestamente ilegal”, apoiada em “fatos genéricos, não determinados”, e, quando muito, “veiculados pela imprensa”, conforme se lê na reportagem de Paulo Roberto Netto, em O Estado de S. Paulo, de 24 de abril.

No entanto, se o documento da CPI nada dizia, nos bastidores da Alesp os falastrões diziam muito. Por exemplo, em reportagem de Pedro Venceslau e Renata Cafardo, de O Estado de S. Paulo, publicada em 22 de abril, revelava-se que a “Assembleia Legislativa de São Paulo será palco de uma ofensiva da base do governo João Doria (PSDB) com abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito contra o que os deputados definem como ‘aparelhamento de esquerda’ das universidades públicas paulistas e ‘gastos excessivos’ com funcionários e professores”. No âmbito dessa ofensiva, ignorava-se com a maior desfaçatez o decreto de “autonomia universitária”, de 1989, na gestão Orestes Quércia, que oficializou não apenas a liberdade de cátedra, mas sobretudo a autonomia de gestão administrativa e financeira de seus recursos materiais — decreto justamente lembrado na sessão conjunta dos Conselhos Universitários de USP, Unesp e Unicamp, no dia 15 de agosto deste ano, no campus da primeira.

Segundo o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano de Azevedo Marques, o decreto da “autonomia universitária” implica em dizer que “a instituição conduz seus assuntos acadêmicos e indica seus dirigentes”, cláusula que considera “absolutamente impenetrável porque vem da Constituição”. Os mesmos pontos foram reafirmados pelo STF, em 2018, quando aconteceram invasões truculentas de tropas policiais a Universidades, em vésperas das eleições, sob os mais exorbitantes pretextos.

E se afrontar a Constituição é inadmissível num estado de direito, o que dizer de uma CPI que pretende fazer triagem ideológica dos membros da Universidade? Aqui, violenta-se a Constituição e ainda a própria ideia de democracia, onde a liberdade de credos religiosos e de convicções políticas é inalienável de cada cidadão da república. A vontade de reprimir cientistas e pensadores “de esquerda”, em si mesma, é repugnante e tem de ser repudiada — não apenas pelos que se consideram de esquerda, que, diga-se, nem de longe são maioria na Universidade. Não é a esquerda que é atingida por uma aberração parlamentar como essa, mas o próprio coração da democracia, pois se trata de um ato de traição inaceitável por parte de representantes eleitos, cuja legitimidade depende dela.

A ameaça do deputado Wellington Moura (PRB), vice-líder do governo, de “analisar como as questões ideológicas estão implicando no orçamento” [sic], dado perceber “um predomínio da esquerda nas universidades” é tão ostensivamente desinformada como ofensiva à mais singela ideia de governo democrático. O que ele imagina como “análise”? Pedir atestado ideológico para saber se o dinheiro gasto com a pesquisa é adequado? Julga que os maiores cientistas e intelectuais do país farão ou não um trabalho de pesquisa financeiramente justificado de acordo com o voto que deram na última eleição? Que o médico que pesquisa o câncer, o físico que estuda o neutrino, ou o crítico da cultura hão de gastar bem ou mal dependendo de ler a mesma cartilha ideológica dos governistas? Não há nada mais contrário à ideia de boa ciência do que a tentativa de controlar politicamente os seus laboratórios, dados e estudos. Tal propósito é abertamente fascistoide, ainda que esconda o seu nome vergonhoso com a preocupação fiscalista ou de gestão eficiente.

E a vergonha desse Processo não se apagará nem que os resultados sejam nulos! O gesto espúrio está inscrito definitivamente na tentativa impossível de submeter a inteligência e a cultura, livres por natureza, à adoção de qualquer ideário político, muito menos a um único ideário político. De resto, tudo na CPI é miseravelmente falso. O que está por trás dessa caça às bruxas é bem mais palpável que as ideologias de ocasião. O que os governistas desejam é o mesmo que já anunciaram vários dos economistas do primeiro escalão de o Estado e do país: a desvinculação das verbas destinadas à Educação para fazer com ela o que quiserem. Está por trás dessa investigação o vil desejo de meter a mão nos recursos das Universidades, assim como querem meter a mão nos recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Assim, ao longo da CPI, lançando mão das parvoíces ideológicas agora habituais, que dão vergonha alheia a qualquer pessoa já nem digo inteligente, mas minimamente civil, o que pretendem é dispor a bel-prazer dos recursos públicos que, constitucionalmente, estão obrigados a repassar para as Universidades. Eis o que se esconde na falta de clareza da CPI. Eis a sua obscenidade básica. Brandem o dedo contra a figura ridícula do “marxismo cultural” como cortina de fumaça para financiar uma avidez primária, burra e sem futuro. Não lhes importa nada que sacrifiquem nesse Processo o ensino científico e crítico mais forte do país, nível duramente atingido apenas a partir da autonomia de gestão pedagógica e financeira das Universidades.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho