Uma tradução de Mattina

A aparente simplicidade do poema de Ungaretti esconde um problema considerado insolúvel para traduzi-lo ao português
Giuseppe Ungaretti, poeta italiano
30/08/2019

 

Os leitores e tradutores de poesia italiana muito provavelmente já se defrontaram com Mattina [Manhã], poema lapidar de Giuseppe Ungaretti:

M’illumino
d’immenso.[i]

Sua aparente simplicidade esconde, todavia, um problema considerado insolúvel para a tradução em língua portuguesa: o fato, assinalado por vários estudiosos, de o verbo original soar proparoxítono — “illUmino” —, diverso do paroxítono vernáculo “ilumIno”.

O texto italiano comporta dois versos de duas sílabas métricas (assim considerados porque é na sílaba 2 que incide a tonicidade), seguidas, no verso 1, de duas átonas (“-mino”), e, no seguinte, de uma (“-so”).

Numa tradução literal, teríamos:

Me ilumino
de imenso.

Tudo certo quanto ao segundo verso, mas no primeiro há um deslocamento da tonicidade para a sílaba 3, gerando sensível prejuízo rítmico pela supressão da simetria com o verso seguinte, acentuado (nas duas línguas) na sílaba 2. “Ilumino-me” tampouco resolveria o impasse.

Uma engenhosa solução foi proposta por Haroldo de Campos:[ii]

Deslumbro-me
de imenso.

O tradutor conseguiu restaurar a tonicidade da segunda sílaba do verso inicial, consoante a matriz de Ungaretti: “illUmino”/ “DeslUmbro”, com a vantagem suplementar de escolher um verbo que mantém a vogal tônica, /u/, presente no texto italiano — ao custo, porém, de uma forte alteração semântica, na troca de “iluminar” por “deslumbrar”[iii]. A afirmação explícita de deslumbramento frente ao dia não é informação contida no poema original. Ademais, o iluminar é ação de fora para dentro, o poeta se deixa iluminar pela manhã, enquanto o deslumbrar-se é reação de dentro para fora, diante da manhã.

Busquei uma alternativa que unisse a fidelidade ao pensamento de Ungaretti às características melódicas e rítmicas com que ele foi expresso. Para tal, optei pela inversão dos versos da sequência italiana. Tive de trair o poema de origem nesse aspecto para tentar ser-lhe fiel em outros, no plano da forma:

De imenso me i-

-lumino.

Vejamos. Em Ungaretti (“M’illumino”), conforme já dito, encadeiam-se uma sílaba átona, a tônica e duas outras átonas. Na tradução (“De imenso me i-”), ocorre disposição similar, com o adendo de o atributo da amplitude replicar-se na duração mais longa da vogal /i/, expandida nas crases que abrem e fecham o verso: “De i”; “me i-”. Para falar de algo imenso, prolongam-se também as vogais. Com isso, o fecho do poema em português (“-lumino”) passa a preservar uma rigorosa identidade rítmica com o epílogo italiano (“d’immenso”): nos dois casos, os versos se constituem de três sílabas, numa sucessão de átona, tônica e átona. Ambos igualmente dispõem da consoante /m/ no início da sílaba forte.

Essas considerações objetivaram demonstrar que a grande poesia, mesmo condensada em pequeno poema, demanda um trabalho inesgotável para o tradutor, perpetuamente lançado ao desafio de recriar em outro idioma a química indissolúvel de som e sentido que deu vida ao texto original.

 

NOTAS

[i] Mattina. In: WATAHIN, Lucia, org., CAMPOS, Haroldo de, BERNARDINI, Aurora F., trad. Ungaretti. Daquela estrela à outra. São Paulo; Ateliê Editorial, 2003. p. 56.

[ii] Id., ibid., p. 57.

[iii] Geraldo Holanda Cavalcanti, entre outras observações, contrapõe a “epifania”, no poema de Ungaretti, ao “deslumbramento”, na tradução de Campos. In: UNGARETTI, Giuseppe. Poemas. CAVALCANTI, Geraldo Holanda, sel., trad. e notas. São Paulo: EdUSP, 2017. p. 263.

 

Antonio Carlos Secchin

É poeta, ensaísta, professor emérito da UFRJ e membro da ABL. Em 2017 publicou Desdizer, poesia reunida, editada em Portugal no ano seguinte. Seu livro Percursos da poesia brasileira, do século XVIII ao XXI ganhou o prêmio da APCA para melhor livro de ensaios publicado no país em 2018.

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