À beira do precipício

"Contos completos", de Caio Fernando Abreu, traz narrativas carregadas de dor e uma desesperança sem cura
Caio Fernando de Abreu, escritor e jornalista.
29/08/2019

Queria escrever qualquer coisa grande, ou muito triste ou muito escura. (…) Mas vai sair tudo parecido comigo: desinteressante, miúdo, turvo.

O trecho acima vem do conto O ovo, cuja epígrafe é uma frase de um dos textos mais emblemáticos de Clarice Lispector, O ovo e a galinha. Pudera. Não tem como respirar Caio Fernando Abreu sem perceber a aproximação. No entanto, não se enganem: o autor gaúcho cria seu próprio oxigênio; seu fôlego é de uma intensidade particular. Só Caio escreve como Caio.

Um dos aspectos da proximidade com Clarice Lispector que fica mais evidente em Contos completos é a lição do que “tortuosamente se faz”. Nada é pronto e acabado, coeso, lindo e perfeito. Caio escreve o tortuoso, o imperfeito, o que está com muito custo nascendo quando se escreve. Existe uma busca desesperada por entender. Ele diz e desdiz, escreve e rascunha e apaga não apagando — fica assim, o dito e o não-dito sobrepostos. O texto é para o autor um órgão pulsante, corpo em permanente transformação, que pode sempre melhorar, como explica na abertura de Morangos mofados. Além disso, as sobras dos tecidos vivos não são descartadas. O aproveitamento das gavetas, mais uma lição de Clarice (a epígrafe é dela, para a introdução de Ovelhas negras — “Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também não presta”).

Caio anuncia: “Nunca pertenci àquele tipo histérico de escritor que rasga e joga fora. Ao contrário, guardo sempre as várias versões de um texto, da frase em guardanapo de bar à impressão no computador. Será falta de rigor? Pouco me importa”.

Os textos de Caio se inscrevem na imprecisão dos gêneros e na fluidez da estrutura, como o autor explica em uma nota à introdução de Os dragões não conhecem o paraíso: “Se o leitor quiser, este pode ser um livro de contos. Um livro com treze histórias independentes, girando sempre em torno de um mesmo tema: amor. Amor e sexo, amor e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e memória, amor e medo, amor e loucura. Mas se o leitor também quiser, este pode ser uma espécie de romance-móbile. Um romance desmontável, onde essas treze peças talvez possam completar-se (…)”.

O volume inclui Inventário do irremediável (1970), O ovo apunhalado (1975), Pedras de Calcutá (1977), Morangos mofados (1982), Os dragões não conhecem o paraíso (1988), Ovelhas negras (1995), além de alguns textos inéditos ao final do volume.

Tema recorrente são também as tentativas falidas de recuperar “as lembranças espatifadas no quarto”, pois a memória é sempre esfacelada, vaga e imprestável. Com que facilidade as coisas são esquecidas, apodrecidas e murchadas.

O tempo voraz, a morte à espreita (no conto Uns sábados, uns agostos):

Como durante vários dias me esqueci dessas flores, elas perderam lentamente as pétalas, que precisei juntar uma a uma para jogar no corredor, depois varrê-las e colocá-las no lixo. Mas sobre isso, creio que poderá informar melhor algum vizinho ou mesmo o lixeiro: nesses agostos não é comum ver flores amarelas, mesmo murchas, esquecidas pelas latas de lixo.

Os delírios são ainda uma forma de escrever o impossível, o que escapa. Muitos contos beiram o realismo mágico ou o absurdo; é nítido que o autor bebeu nesta fonte, como ele mesmo aponta em uma das notas. Um destes delírios está no belíssimo Mergulho I, em que uma casa tomada pelas águas de repente vira um mar… Outros exemplos, entre vários, em que o absurdo desorienta as rédeas da escrita são o belíssimo “Os dragões não conhecem o paraíso”, “A visita” e “Joãozinho e Mariazinha”, uma busca por um desconhecido na madrugada, espaço cego dos eternos desencontros.

Angústia
Uma dor e uma desesperança sem cura atravessam os textos — lembrar da dor de estômago que maltrata Macabéa em A hora da estrela, mais uma intersecção. As frases angustiadas se espalham aqui e ali pelos contos — “Estava cansado de cerzir aquela matéria gasta no fundo de mim”; “As coisas bonitas já não acontecem mais”; “O céu tão azul lá fora, e aquele mal-estar aqui dentro”. O espaço dos bares nas madrugadas ocupa grande parte das cenas, sempre na desvalidas procuras e desamores, como no conto Rato: “você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora, neste bar, sozinho, longe de você e de mim”.

Personagens, e narrador em especial, estão à beira de um despenhadeiro, caindo em um poço na consciência da queda profunda. Aliás, o poço é outra imagem recorrente. Como neste trecho:

Abaixo de nós vejo o poço cheio de lanças pontiagudas onde se entrelaçam serpentes. Do poço até as comportas, uma rampa inclinada. Um vento começa a sugar-nos para o poço. Tento segurar-me no chão do carro, minhas unhas se estraçalham contra a aspereza do metal, meus dedos estão ensanguentados, meu corpo exausto. Outras carnes roçam a minha, boca, seios, braços, olhos. Guardo nos dedos um punhado de cabelos que não são meus. Não resisto mais. Ao passar, alguém se agarra em mim, carregando-me junto. Vamos abraçados, nossas costas roçando doloridamente pela superfície escorregadia da rampa. Por cima de nós, um céu cinzento. Lá embaixo, as cobras e as lanças. Venenosas, agudas. Abraço com força o meu camarada e fecho os olhos como se gritasse. Como se pudesse gritar.

O volume Contos completos traz ao final textos inéditos que comprovam que o autor teria muito o que escrever em uma obra fundamental para a literatura brasileira. A impressão que fica é que a sugestão do romance-móbile, dada pelo próprio Caio, pode ser estendida; as narrativas curtas, em uma perspectiva de encontro, vistas assim reunidas, poderiam ser um único grande romance. Desmontável, tortuoso, dolorido e apaixonado.

Contos completos
Caio Fernando Abreu
Companhia das Letras
765 págs.
Caio Fernando Abreu
Nasceu em Santiago do Boqueirão (RS), em 1948. Publicou contos, peças, poemas e romances, além de uma vasta produção epistolar. Algumas de suas obras são Limite branco (1971), O ovo apunhalado (1975), Morangos mofados (1982) e Onde andará Dulce Veiga (1990). Morreu em 1996, em Porto Alegre.
Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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