Original contribuição

João Adolfo Hansen produz uma crítica implacável à teleologia modernista e nacionalista
Ilustração: Carolina Vigna
29/08/2019

Por feliz iniciativa das professoras Cilaine Alves Cunha e Mayra Laudanna, a Edusp está lançando Agudezas seiscentistas e outros ensaios, compilação de trabalhos de João Adolfo Hansen, professor aposentado de Literatura Brasileira da USP, cujas contribuições nas áreas de Literatura e História Colonial, de Retórica e ainda de estudos sobre o Barroco, têm sido de grande importância desde o final dos anos 1980. Pode-se mesmo dizer que essas disciplinas ganharam novo fôlego, no Brasil, depois das intervenções de Hansen, que usualmente articulam vasta erudição e notável capacidade de sistematização conceitual.

E isso que afirmo, em termos acadêmicos, evidencia-se para mim também em termos pessoais. Não se trata aqui de dar depoimento doméstico, claro, e sim de celebrar o livro agora ao alcance de todos, mas, com a alegria dele, veio-me também a lembrança do momento em que o conheci, quando de meu exame de qualificação de doutorado, na USP, nos idos de 1989. Na ocasião, minha tese sobre o Padre Antonio Vieira causava alguma estranheza na área de Teoria Literária, onde a desenvolvia, por conta da centralidade que ela atribuía à Teologia e à Escolástica na interpretação dos sermões, deslocando para um segundo plano questões de caráter literário ou sociológico mais aceitas tradicionalmente. Pois Hansen, naquela ocasião, reforçou frontalmente o que eu propunha, tornando-se desde então um interlocutor intelectual constante, generoso, no ambiente nem sempre ameno ou estimulante da Universidade brasileira. Passados exatos trinta anos daquela ocasião, percebo com nitidez como uma carreira acadêmica se faz fundamentalmente a partir desses encontros intelectuais decisivos que se logra ter, possivelmente mais por sorte que merecimento.

Tornando, pois, ao lançamento: os trabalhos compilados em Agudezas seiscentistas versam sobre a representação das letras coloniais luso-brasileiras dos séculos 16 a 18, e incluem o exame aprofundado de conceitos centrais do período como “razão de estado”, “discrição”, “espelho de príncipes”, “agudeza”, “engenho”, “emblemas”, “empresas” etc., além de outros referentes às matrizes retóricas antigas, como “ut pictura poesis”, “écfrasis”, “lugar comum”, “invenção”, “elocução” etc.

Tendo-os lido, ao longo dos anos, bem como acompanhado o estado da arte em algumas das áreas de saber envolvidas aí, permito-me dizer que os estudos de Hansen constituem contribuições originais, e, por vezes inaugurais, em vários assuntos negligenciados pela tradição crítica brasileira. Sem esforço, poderia destacar quatro pontos, que estão presentes em todos os seus estudos, e que, a meu ver, são representativos de sua importância para os estudos literários no Brasil.

O primeiro ponto a destacar diz respeito ao fato de que Hansen produz uma crítica implacável à teleologia modernista e nacionalista que predominou no campo dos estudos literários brasileiros, irradiados sobretudo a partir de São Paulo, e, em particular, da própria USP. Tal teleologia, que trata a história cultural do Brasil como uma evolução destinada à consecução de um espírito nacional, cuja realização plena se daria no modernismo paulista, teve várias consequências, algumas bastante redutoras, como a de submeter o conceito de “literatura” ao de “Brasil”, assim como a de se desinteressar, possivelmente como nenhum outro país americano, pela produção letrada colonial. Essa displicência acabou gerando um grande déficit de trabalhos sobre o período, os quais, quando existem, usualmente valorizam nele justamente o lhe falta, a saber, o que é interpretado, de forma determinista e inverossímil, como prefiguração extemporânea de formas nacionais.

O segundo ponto genericamente importante dos trabalhos de Hansen é o esforço de empreender um ajuste histórico na discussão das letras coloniais, o que é feito tanto recusando o emprego corrente de categorias anacrônicas que as desfiguram, como buscando reconfigurá-las a partir do levantamento, recolha e análise da documentação disponível referente aos textos e às circunstâncias da sua produção e circulação. Vale dizer, para Hansen, trata-se sempre de conhecer as letras a partir das práticas históricas nas quais se efetuam.

Um terceiro ponto importante na abordagem de Hansen das letras coloniais é o cuidadoso ajuste lexical, no qual muito do vocabulário usualmente empregado na área sofre escrutínio e crítica. Alguns — não eu, que participo integralmente da mesma preocupação — apontam aí algum rigorismo nominalista, mas creio que não seja o caso: um vocabulário inadequado introduz de maneira mais ou menos sub-reptícia categorias anacrônicas ou demasiado grosseiras para distinguir os sentidos implicados nas obras. No âmbito desse ajuste de vocabulário, diria ainda que o lugar epistemologicamente dominante nas análises de Hansen tende a ser o das preceptivas retórico-poéticas e seus usos nas sociedades de corte.

Assinalaria como quarto ponto de força nos estudos de Hansen a abertura dos estudos literários para muito além da consideração exclusiva dos textos e gêneros ficcionais, aos quais tende a reduzir-se a investigação literária de perspectiva pós-romântica, que pressupõe uma autonomia da estética— o que é rigorosamente insustentável nos termos do Antigo Regime, em que os campos artísticos abrem-se para considerações de toda ordem, seja histórica, política ou teológica. De fato, além da prosa de ficção ou da poesia, há uma riqueza imensa de gêneros a considerar aqui, das cartas familiares ou negociais aos documentos notariais, dos pareceres suasórios aos espelhos de príncipes, dos tratados morais aos panegíricos e epitáfios etc. Essa postura dá uma nova percepção da riqueza da produção letrada do antigo regime, onde a abordagem romântica não via senão normatividade, burocracia e bajulação.

Obviamente, esses quatro aspectos que destaquei não significam que os estudos de Hansen sejam isentos de crítica, ou que novos trabalhos não possam obter descrições alternativas de cada um dos assuntos abordados na compilação, quiçá até mais ajustadas aos seus próprios pressupostos. Isto, de resto, é o que há de mais próprio dos estudos em Humanidades, que implicam sempre dobrada atenção ao tempo e às circunstâncias interpretativas, na busca de um ensaio autoral. A enunciação que fiz acima dos pontos-chaves dos textos de Hansen visam apenas evidenciar algumas de suas virtudes, que ganharíamos em prestar atenção.

Finalmente, não poderia dar por finda a minha recomendação de leitura de Agudezas seiscentistas e outros ensaios, sem referir o preciso e intransferível posfácio de Leon Kossovitch, professor aposentado do Departamento de Filosofia da USP, que tanto vale pelo saber que enuncia, como pela companhia que faz, pois Leon é o principal interlocutor de João Adolfo Hansen, desde os seus tempos de formação. Não imagino melhor intérprete a conduzir a leitura do volume.

Agudezas seiscentistas e outros ensaios
João Adolfo Hansen
Org.: Cilaine Alves Cunha e Mayra Laudanna
Edusp
344 págs.
Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho