A linguagem do narrador na luta verbal

Lima Barreto deu início a uma desejada criação de uma linguagem brasileira para a ficção nacional
Lima Barreto, autor de Recordações do Escrivão Isaías Caminha
30/08/2019

Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto estabelece, por assim dizer, uma narrativa essencialmente brasileira, a partir de uma linguagem áspera, sem vinculações com a gramática clássica, com o propósito de criar um universo literário muito próximo das nossas ruas e do nosso povo, o que lhe custou a acusação de descuidado e, na maioria das vezes, de desinformação, senão de analfabeto.

Por esta característica, Francisco de Assis Barbosa classificou-o de “um autêntico escritor brasileiro”, sem vinculação muito rigorosa com as chamadas regras gramaticais, fiel a sua classe social de escravos e ex-escravos, de miseráveis emergentes, enfim, de gente do povo. Escreve o crítico: “Este é o papel de Lima Barreto: o de ser um escritor brasileiro autêntico, tal como Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar, liberto do complexo colonialista e até mesmo rebelde às injunções do estilo e da gramática da antiga metrópole portuguesa”.

Por tudo isso é que o estudioso assegura, com firmeza: “Em suma, o verdadeiro Lima Barreto se impõe, assim, definitivamente como criador de um estilo brasileiro, antecipando-se a Monteiro Lobato, aos modernistas de São Paulo e ao grupo nordestino. Antecipador, sim. E que teve ação tanto mais relevante por ter sido o sucessor de Machado de Assis, com o contrapeso do seu contemporâneo Coelho Neto — ambos — Machado e Neto, lusitanizantes, um com gênio, outro sem ele — e que foram os principais responsáveis pela ruptura de uma maneira de ver, sentir e escrever brasileiramente, iniciada pelos nossos escritores românticos”.

Também Antônio Houaiss – ou sobretudo Antônio Houaiss — destaca essa tendência do autêntico escritor brasileiro, afirmando que “Lima Barreto não poderá, porém, ser considerado um absenteísta ou um ignorante da problemática da correção ou da eficácia estética da linguagem. E, correto ou incorreto, de bom ou de bom gosto, foi incontestavelmente um escritor muito consciente dos móveis e dos fins, dos escritores realistas desta fase crítica de nossa evolução e afins — inscrevendo-se como um dos maiores, senão o maior desta fase de nossa evolução social. E com tal riqueza de ‘comunicação” e de ‘expressão’, que, qualquer orientação gramatical ou estilística se pode comprazer em ver quantas questões queiras, ligadas à formulação prática, lúdica,, expositiva, silogística, impressiva, expressiva, automática ou trabalhada do problema da arte literária”.

Sem dúvida, uma questão extremamente relevante. Lima Barreto deu início, por assim dizer, a uma desejada criação de uma linguagem brasileira para a ficção nacional que, entre outras coisas, resultou no estilo revolucionário de Guimarães Rosa. Até chegar lá, o caminho foi longo e tortuoso, embora belo e encantador. Mesmo que ainda hoje a ignorância nacional exige, na maioria dos casos, uma gramaticazinha arrumada, glamourosa, certinha, metida a besta, de brincos e pantalonas. Uma gramaticazinha de nariz arrebitado, sem compromisso com o suor das ruas. Com a fala dos becos e das esquinas.

Deve-se, assim, a Lima Barreto, o início de uma luta que dura séculos, mas a ignorância, a estupidez e a necessidade de afirmação de iletrados têm exigido um constante reexame da situação, acabando-se com a imitação conservadora de uma linguagem conservadora e tradicional.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

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