Romance revisado

Resposta ao artigo "Romance abatido", de Rodrigo Gurgel, publicado na edição de abril
José Geraldo Vieira, autor de “A mulher que fugiu de Sodoma”
27/05/2019

No Rascunho de abril, Rodrigo Gurgel publicou “Romance abatido”, texto em que analisa o romance A mulher que fugiu de Sodoma, de José Geraldo Vieira. É sempre bom quando um grande autor é relembrado. Algumas reflexões, porém, me pareceram pertinentes.

A mulher que fugiu de Sodoma, romance de estreia de JGV, escrito em 1924 e publicado em 1931, é um belo livro, mas, produto de um jovem ainda em busca de seu estilo, com forte realismo dostoeivskiano, não é o que melhor representa o autor. Quando alguém demonstra interesse pela literatura de José Geraldo e me pergunta por onde começar, eu jamais o indico. Este, ao lado de A túnica e os dados (1947), A quadragésima porta (1944), Carta a minha filha em prantos (1946), ou mesmo o tardio A mais que branca (1974), devem ser lidos por quem já conhece o autor e sua obra. Como quem resenha um livro lançado semana passada, Gurgel escreve: “O romance, contudo, apresenta desequilíbrios (…) Há excesso de palavras — o estilo se torna algo circunvagante”. Ora, se era para avaliar uma obra literária de JGV, por que Gurgel não pegou A ladeira da memória, O albatroz ou Terreno baldio? Estes livros, lançados em 1950, 1952 e 1960, respectivamente, apresentam o autor em sua plenitude, com todas as qualidades — e defeitos — pelos quais viria a ser lembrado. E, quanto ao “excesso de palavras,” goste-se ou não, trata-se de uma marca registrada do autor.

O primeiro problema no texto de Rodrigo Gurgel vem estampado logo no título: “Romance abatido”. Gurgel argumenta, baseado em um prefácio que Francisco Escorsim escreveu para uma coletânea de textos curtos de JGV, que este, abalado por uma pichação crítica, na calçada em frente à sua casa, teria decidido modificar e amputar o livro, piorando-o. Depois de desenvolver sua hipótese, Gurgel, conclui: “o que o romance ganhou em concisão, perdeu em referências psicológicas e morais (…). José Geraldo Vieira não apenas descaracterizou a obra, mas o fez para agradar uma voz anônima e desqualificada”. Esta afirmação é baseada em entrevista de JGV citada pelo referido Escorsim. Ora, uma coisa é o autor sentir-se incomodado por uma pichação agressiva na porta de casa (quem não se sentiria?); outra, bem diferente, é acreditar que mudanças em livros foram causadas por isso. A fortuna crítica a respeito de JGV, incluindo os prefácios das edições da Descaminhos, escritos por Francisco Foot Hardman, Alfredo Bosi, Marcio Scavone (neto de José Geraldo) e eu (sobrinho-neto), não nos permite pensar que uma pichação faria com que o autor alterasse seus livros. Na verdade, José Geraldo mexia em seus livros, e mexia muito, porque era um perfeccionista, eternamente insatisfeito com o que publicava.

Todas as reedições dos romances de JGV passavam por severas reescritas, até o ponto de, em A ladeira da memória, ele ter mudado, radicalmente, o desfecho. Na primeira edição: “Sim, vou para Itatiaia. Lá entregarei o [cavalo] São Jorge, enveredarei para a estação, pedirei a mala, mudarei a roupa em qualquer hotelejo, ficarei na plataforma esperando o trem para São Paulo”. Na terceira: “… ficarei na plataforma esperando o trem. Para São Paulo, ou para o Rio? Qualquer um. O que passar primeiro”. Eu nem precisaria dizer que, neste ponto da narrativa, a decisão do protagonista implicava perspectivas nada menos que opostas. E, não que isso importe, mas, em minha opinião, o desfecho “aberto” ficou muito melhor.

José Geraldo não se preocupava com a crítica. Ele era a crítica. JGV foi um dos nomes mais poderosos e reverenciados da cultura brasileira em meados do século passado. Entre os entusiastas de sua obra estavam, só para citar alguns, Nelson Werneck Sodré, Erico Verissimo, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Wilson Martins e Manuel Bandeira. Em tempos mais recentes, sua obra continuou sendo admirada por estudiosos do calibre de Alfredo Bosi, Francisco Foot Hardman, José Armando Pereira da Silva, Carlos Eduardo Fernandes Netto e mesmo, apesar de todas as reservas que manifestou, Antonio Candido. É opinião quase unânime que JGV foi o autor da obra mais cosmopolita da literatura brasileira. Quanto aos leitores, basta dizer que a primeira edição de A ladeira da memória, pela Coleção Saraiva, em 1950, teve a impressionante tiragem de 45.000 exemplares, logo esgotada, com uma reimpressão em seguida.

Multifacetado
Além de romancista, médico, tradutor e professor, José Geraldo Vieira foi um dos mais influentes críticos de arte de seu tempo, tanto que, convocado por Ciccillo Matarazzo, viria a exercer papel fundamental nas primeiras edições da Bienal de Arte de São Paulo. Por ter vivido na Europa e frequentado as vanguardas artísticas de Paris e Berlim no começo do século 20, ele era amigo de muitos dos grandes artistas europeus daqueles anos. Seu apartamento, no Largo do Arouche, que dividia com minha tia-avó, a escritora Maria de Lourdes Teixeira, foi um verdadeiro polo cultural da São Paulo dos anos cinquenta e começo dos sessenta. Nas paredes havia quadros de grandes pintores, entre os quais Picasso (presente do próprio, muitos anos antes, em Paris), e ali ocorriam recepções às quais estiveram presentes, por exemplo, Sartre e Camus. Faulkner hospedou-se lá. A partir dos anos 1960, José Geraldo se dedicaria cada vez mais à crítica de arte, o que acabaria, infelizmente, por prejudicar sua produção romanesca. Depois de Terreno baldio (o meu predileto), de 1961, ele publicaria, até morrer, em 1977, apenas mais dois romances, os quais, ainda que tenham méritos, não estão no mesmo patamar das suas principais obras: Paralelo 16: Brasília (1966), motivado por um concurso literário criado para celebrar a nova capital federal, e A mais que branca (1974), inspirado por uma história contada a ele, na Bahia, por Glauber Rocha.

JGV nasceu muito rico, no Rio de Janeiro, passou boa parte da juventude na Europa, e seus livros retratam, como nenhum outro na nossa literatura, a vida da alta burguesia da Belle Époque carioca. São romances densos, cultos, extremamente bem construídos e em boa parte autobiográficos. Se têm um defeito, conforme apontou Alfredo Bosi, é em insistir que tudo se resolve na arte. Os personagens são eruditos, conversam abusando de citações, vivem num mundo quase à parte. Bosi estava certo. Certa vez, ainda nova, minha mãe perguntou a José Geraldo como fazer para saber se um rapaz seria a pessoa certa para namorar. A resposta: “leve-o a um museu e ouça o que ele tem a dizer. Aí você saberá”. A triste ironia da história é que meu pai, um jovem artista suíço perdido nos trópicos, passaria com louvor em qualquer teste de museu, mas isso não significou que minha mãe e ele tivessem um casamento feliz, ao contrário do que profetizara meu tio-avô. Eu mesmo tive pouco contato com JGV. Sim, houve almoços de família, visitas em fins de semana ao sítio em São Roque onde, no fim da vida, ele vivia com minha tia-avó. Mas pouquíssima conversa, porque, para José Geraldo, crianças e adolescentes eram praticamente invisíveis. A não ser que você pudesse falar sobre arte e literatura, num nível pelo menos palidamente próximo ao dele, não tinha papo.

A obra de JGV é pouco lida, hoje? É. “Condenada ao esquecimento”, como escreve Gurgel? Longe disso. Desde que a Planeta reeditou A ladeira da memória, em 2003, o interesse pela obra de JGV só fez crescer. Quando, na Descaminhos, decidimos, em 2014, publicar todos os seus romances em ebook, achávamos que não venderiam nada. E não é que vendem? Não são best-seller, é óbvio, mas vendem, até porque muitos cursos de Letras, em todo o Brasil, passaram a incluí-los no currículo, em movimento iniciado pelo IEL, da Unicamp. Talvez o maior problema do texto de Gurgel venha do fato de ele ter se baseado quase que apenas no referido prefácio de Escorsim, que não só comete o disparate de afirmar que quem resgatou JGV do esquecimento foi Olavo de Carvalho (!!!), como ignora quase todos os que estudaram e divulgaram a obra de JGV nas últimas décadas, alguns dos quais citados acima.

A mulher que fugiu de Sodoma tem “desequilíbrios?” Certamente. É, afinal, um romance de estreia. Foi “amputado” nas edições posteriores? Decididamente não. Foi, sim, revisado, como tudo o que o autor reeditava. O bom, no fim das contas, é que estamos falando de José Geraldo Vieira. Convido-o a ir, leitor, em busca dos romances de JGV, e a viajar com eles por um universo que você não poderá conhecer senão neles. Mas não comece por A mulher que fugiu de Sodoma. E busque sempre as edições mais recentes dentre as publicadas enquanto ele vivia, pois elas não estão “descaracterizadas”, mas “revisadas”.

André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

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