Antes tarde do que nunca

Eliana Cardoso: "Entre escritores, como em qualquer lugar, sempre há solidariedade e competição, amor e ódio, admiração e inveja"
Eliana Cardoso, autora de “Nuvem negra”
27/05/2019

Apesar de ter adiado a vontade de se dedicar à literatura para ir em busca de uma carreira que lhe garantisse independência financeira, Eliana Cardoso acabou se rendendo à ficção há cinco anos. Ao estrear com o romance Bonecas russas (2014), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, já tinha sido considerada pela revista de negócios e economia Forbes uma das mulheres mais influentes do Brasil. Formada em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e com doutorado na mesma área pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, a mineira de Belo Horizonte também é autora de Nuvem negra (2016) e Dama de paus, que neste ano venceu a terceira edição do Prêmio Kindle de Literatura e será publicado pela Nova Fronteira.

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Escrever era um desejo desde a infância. Na juventude o supus inalcançável quando, decidida a ter uma carreira que garantisse minha independência financeira, adiei a vocação. Na maturidade redescobri o desejo da criança e me entreguei a ele.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Ler com um lápis ou caneta ao alcance da mão. Quando leio a versão impressa, anoto nos livros. Quando leio a versão digital, tenho um caderno de notas ao lado.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Um pouco de poesia. Um poema de Cecília Meireles, outro de Elizabeth Bishop, antes do final do dia.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
História concisa do Brasil
, do Boris Fausto, se tivesse a esperança de que ele pudesse aprender o significado de uma ditadura militar. E, se acreditasse que ele pudesse cultivar a dúvida e aceitar visões diferentes dos próprios preconceitos, talvez Jacques, o fatalista, de Diderot. Quem sabe ele enxergaria através da janela do Iluminismo a oportunidade de sair da Idade Média. Como acredito que o presidente não está preparado para o choque com Diderot (e a crítica da religião, o elogio da ciência e a percepção do caos da natureza), seria ilusão esperar que a leitura abalasse suas convicções autoritárias.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Na minha casa, sozinha, em silêncio, com muitas horas livres pela frente.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Todas, desde que haja luz forte bastante para realçar o contraste das letras escuras na página clara.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Para o eterno aprendiz, trabalho e prazer se confundem, e todo dia é produtivo. Mesmo quando não escrevo, sempre aprendo coisas novas, a cada dia.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Encontrar a palavra ou a frase que exprima bem o sentimento ou o caráter de um personagem.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A arrogância. Desconfio que a arrogância é nossa maior inimiga em qualquer profissão e em qualquer relacionamento.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Nada em particular, pois acredito que o meio literário seja igual ao ambiente das outras profissões. Entre escritores, como em qualquer lugar, sempre há solidariedade e competição, amor e ódio, admiração e inveja, desprendimento e ciúme, insegurança e arrogância, aplausos e críticas. Todas as emoções e atitudes marcam as relações humanas em qualquer ofício.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Um dos maiores contistas da língua inglesa, William Trevor. Ele controla a narrativa com primor, penetra os cantos mais escuros da vida psíquica de seus personagens e deixa o leitor entrever de raspão — sob a terna resignação do herói — a calamidade que o atormenta. Mestre dos pequenos movimentos da consciência, Trevor deixa que a vida se apresente por si mesma em dois romances já traduzidos no Brasil: A história de Lucy Gault e A jornada de Felícia.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível é Rei Lear, de Shakespeare. Trata-se de um retrato da velhice, concebida não como a idade da sensatez, mas como a idade da aberração. Acho que Shakespeare usa a velhice para compreender o homem e o absurdo de sua existência. Um descartável é Finnegans wake, de James Joyce. Excetuando seus tradutores (Augusto e Haroldo de Campos, Donaldo Schüler, Dirce do Amarante), vai ser difícil encontrar um brasileiro que leu mais do que poucas páginas desse livro.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Personagens aos quais falte emoção. Personagens que o leitor não consiga enxergar.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Acho quase impossível colocar no papel a descrição de uma cena que seria considerada pornográfica.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Serra Pelada nas fotos de Sebastião Salgado. Foi assim que encontrei o lugar para onde fugiu Manfred, o protagonista de Nuvem negra.

• Quando a inspiração não vem…
Dou uma caminhada ou faço colagens usando fotografias.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Sou tímida em encontros com pessoas a quem admiro. Gostaria, isso sim, de ser invisível assistindo, num café em Lisboa, o diálogo entre Fernando Pessoa e Mário Cláudio. Ou de estar presente em um jantar durante o qual Dostoiévski cobrasse de Nabokov as críticas que ele lhe fez. E seria extraordinário ouvir Emily Dickinson tomando chá com uísque e revelando seus segredos a Elizabeth Bishop.

• O que é um bom leitor?
Bom leitor é aquele que está aberto a consciências e pensamentos diferentes dos seus. Excelente é o leitor que descobre na narrativa aspectos novos e ignorados pela maioria dos críticos.

• O que te dá medo?
A perda da independência e da autonomia.

• O que te faz feliz?
Conversa fiada com boas risadas, um carinho, um bom filme, um sorvete italiano de avelã. E a ópera, com certeza.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A única certeza é a de que não as tenho. Sei apenas que o significado do que escrevo, no momento em que for publicado, deixará de ser meu. Muitos leitores vão visualizar o que escrevi de formas diferentes daquelas que antecipei.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
A de que posso estar escrevendo uma história pela qual só eu me interesse.

• A literatura tem alguma obrigação?
Obrigação, não creio. Mas tenho a ilusão de que os autores que mais aprecio (como Thomas Mann, por exemplo) são dotados de valores éticos parecidos com os meus e de compaixão por seus personagens.

• Qual o limite da ficção?
Não chego a vislumbrar um limite.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Não poderia “levá-lo ao meu líder”, porque me falta um. Mas poderia apresentá-lo a filósofos, como John Rawls, Richard Rorty e Isaiah Berlin, que me ajudam nas tentativas de entender o mundo, a vida e os valores dos terráqueos.

• O que você espera da eternidade?
Existe a eternidade? Não o sabemos, pois nascemos in media res. Mas desconfio de que tudo tem começo e fim.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

Rascunho