Um verão quase outono

O verão tardio, de Luiz Ruffato, traz uma melancólica história de regresso e mostra como as pessoas se tornaram “planetas errantes”
Luiz Ruffato, autor de “O verão tardio”
27/05/2019

Resenhar um livro requer sempre alguns cuidados. Ao chamar a atenção para as peculiaridades, méritos ou eventuais defeitos da obra que comenta, o resenhista corre o risco de antecipar o que o leitor precisa descobrir por ele mesmo. Esse é um equilíbrio dos mais delicados: falar do essencial de um livro sem trair o leitor, seja por sonegar informações necessárias a que ele entenda exatamente do que se fala, seja por interferir no mais interessante, que é o caminho escolhido pelo autor para contar sua história. Um livro não lido deve ser preservado como a caixa de infinitas surpresas que a literatura está sempre disposta a nos proporcionar.

A trama de O verão tardio, mais novo romance de Luiz Ruffato, cabe num único parágrafo, que virá logo abaixo, mas esse exercício de concisão por certo não fará justiça a sua grandeza, além de desidratá-lo de seu maior encanto. Porque, como sói acontecer na boa ficção, a trama é um mero pretexto para alcançar o que de fato importa: as engrenagens do humano que a movimentam. E esse é o subtexto para o qual se olhará em seguida, com todo o cuidado, em respeito ao futuro leitor.

Numa escaldante manhã de um início de março, quando o verão já entrou em declínio, Oséias desembarca em Cataguases, Minas Gerais, vindo de São Paulo, para um périplo de seis dias em sua cidade natal. Sabe-se de imediato que ele não está bem, física ou financeiramente: sofrendo demasiado com o calor temporão, ele começa a contar os trocados da carteira já na estação rodoviária e se nauseia por qualquer motivo. A história vai avançando aos poucos, num fluxo do qual se desvia a todo o momento para enveredar por monólogos interiores, flashbacks e até mesmo fluxos de consciência, e descobre-se que Oséias foi abandonado pela mulher e está sem contato com único filho. Não se sabe por que ele veio a Cataguases. Ali ainda moram duas irmãs: a que está melhor de vida é diretora de escola e esposa de um homem rico e poderoso, mas suspeito de ilicitudes, com quem Oséias se desentendeu no passado; a que teve menos sorte sobrevive com dificuldades na periferia da cidade, casada com um pobretão e trabalhando duro para ajudar no sustento de filhos e netos. Uma terceira irmã suicidou-se ainda na adolescência, episódio que talvez tenha sido um fator importante na desagregação da família após a morte dos pais. Perto dali vive também outro irmão, que se deu muito bem nos negócios, mas se afastou da família original para formar sua própria. Nos seis dias em que perambula pela cidade e seus arredores, Oséias procura os irmãos, visita o cemitério, encontra conhecidos do tempo em que vivia em Cataguases e até numa ex-namorada esbarra pelo caminho. Ele quer, ao que parece, reatar com alguma coisa que ficou perdida ou presa no passado.

Aspectos
Melancolia e tristeza perpassam toda a narrativa. A melancolia acompanha Oséias em cada passo no retorno à cidade natal depois de anos de afastamento. Sem saber exatamente o que o traz ali, há algo que logo o leitor vai perceber: a fragilidade do personagem faz aguçar sua sensibilidade para enxergar no presente um passado que seus contemporâneos não reconhecem mais. Para quem está há muitos anos longe de casa, o reencontro com o cenário onde se cresceu guarda sempre mais memória do que realidade. À medida que se envelhece, as lembranças ganham substância, assim como a consciência da passagem do tempo e da própria finitude. Esse é o processo gerador da melancolia retratada magistralmente por Ruffato com as cores de um verão que luta para se prolongar; ou talvez de um outono, a mais melancólica das estações, que começará em poucos dias e já se insinua em madrugadas de cerração. Inevitável pensar que o personagem refaz a trajetória do próprio autor: Luiz Ruffato é também ele o migrante saído da mesma pequena Cataguases para fazer a vida na grande metrópole paulistana. Ele conhece muito bem os caminhos todos que refaz Oséias, suas mais profundas motivações, e já provou esse sentimento dos que retornam à casa materna e “veem em tudo o que lá não está”, como tão belamente resumiu Fernando Pessoa.

Há também uma tristeza pulsante nas entrelinhas. A sensação de quem volta à terra onde nasceu e não encontra mais a mãe e o pai transcende o plano da melancolia, mas não é dessa tristeza que se fala. Ao procurar pelos irmãos, Oséias percebe o quanto sua vida se distanciou da deles. Ou talvez já soubesse aquilo que a reaproximação agora só venha a confirmar e queira mudar essa condição. O certo é que ele busca o que ninguém ali consegue lhe dar. E o que de fato ele busca? Não se sabe. Muitas vezes se tem a impressão de que seja algo bastante singelo. Rosana, a irmã que está bem de vida, já na primeira das visitas deixa insinuado que poderia facilmente lhe prover, bastaria que ele pedisse. Cria-se a expectativa, mas ele nada pede. Aos poucos, vem a constatação e a tristeza: não há diálogo possível, eles não se entendem mais, se é que algum dia chegaram a se entender depois que a família se desmantelou e cada um foi cuidar da própria vida. Oséias pergunta o que os irmãos não sabem ou evitam responder, as preocupações deles agora são outras e só Oséias se ocupa do passado.

Fora do âmbito familiar o diálogo tampouco acontece. A sociedade de Cataguases reflete a do país dos dias atuais: as pessoas se fecharam em seus respectivos grupos sociais e se tornaram, como bem sintetizado no livro, “planetas errantes”; a colisão e a ruína indicam o futuro previsível para esse cenário onde os diferentes grupos não conseguem mais conversar. A literatura de Ruffato sempre teve um viés social, notadamente quando retrata o universo do pequeno operariado, as formiguinhas anônimas que construíram o país e que quase ninguém se preocupa em personalizar e retratar. Em O verão tardio, os descendentes de imigrantes italianos que se fixaram no Sudeste ganham destaque na maioria dos sobrenomes. Talvez seja uma homenagem discreta aos que ajudaram a erguer um importante polo industrial na Zona da Mata mineira, não foram adequadamente retribuídos por seu trabalho e hoje sobrevivem esquecidos e com dificuldades numa economia que já conheceu melhores dias. Por outro lado, a visão do autor sobre a estratificação social do Brasil está nitidamente exposta no romance, seja na ironia que Oséias usa para descrever os gostos burgueses dos irmãos mais ricos, seja por uma identificação maior do personagem com os menos favorecidos da história, devotando a esses um olhar sempre mais cândido.

O verão tardio é narrado em primeira pessoa e de forma tão íntima que chega a ser injusto para com o livro e seu autor o resenhista ter se valido do distanciamento propiciado por uma terceira pessoa para comentá-lo. Foi como usar luvas cirúrgicas para tocar num corpo eviscerado. Um magnífico romance, cheio de sutilezas que renderiam páginas e mais páginas de análises e considerações críticas feitas com impecável neutralidade, mas nada disso talvez servisse ao que este texto se propõe. Se o leitor pudesse confiar cegamente na avaliação do resenhista, ele arriscaria dizer apenas, sem tanta delonga, como já fez em outras oportunidades: corra atrás desse livro, leia e depois me diga. E com isso o principal de sua missão estaria cumprido.

O verão tardio
Luiz Ruffato
Companhia das Letras
240 págs.
Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases (MG), em 1961, e há anos vive em São Paulo (SP). Jornalista formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, deixou a profissão em 2003, após atuar em diversos jornais, para se dedicar exclusivamente ao ofício de escritor. Publicou vários livros em diversos gêneros, com destaque para a pentalogia Inferno provisório e para o romance Eles eram muitos cavalos, que mereceu os Prêmios APCA e o Machado de Assis da Biblioteca Nacional.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho