Nova poética

A maior parte da humanidade letrada ainda não está preparada pra conhecer a fundo a terceira dimensão
Ilustração: Teo Adorno
27/05/2019

Lanço a teoria do escritor plano
Escritor plano:
Poeta ou ficcionista que vive de modo bidimensional na Terra Plana, também chamada de Planolândia
Terra Plana é o realismo literário (objetivo ou subjetivo, psicológico ou social, cotidiano ou histórico, sagrado ou profano, satírico ou dramático, hetero ou trans, tanto faz)
Planolândia é a caralhada de poemas, peças, crônicas, contos, novelas e romances a respeito da chamada realidade, do chamado mundo real
E vice-versa
Noventa por cento dos escritores: planos
Noventa por cento das obras literária: planas
Leitores e críticos que consomem e incentivam os escritores planos: terraplanistas
Dez por cento dos escritores: esferas
Dez por cento das obras literárias: esferas
Os poetas e ficcionistas que vivem tridimensionalmente na Terra Esférica expressam em suas obras a noção transgressora de que a terceira dimensão existe
Mas a maior parte da humanidade letrada ainda não está preparada pra conhecer a fundo a terceira dimensão
Ainda prefere investigar repetida e exaustivamente todos os meandros da chamada realidade (plana), do chamado mundo real (plano)
A simples insinuação de que o plano bidimensional não é toda a existência, a simples insinuação de que o plano bidimensional é só a aparência mais confortável e convencional da existência, essa simples insinuação causa muito desalento e irritação na maior parte da humanidade letrada plana
Uma pequena parcela dos escritores planos já produziu obras quase esféricas
Quase
Seguindo um desejo súbito, uma pequena parcela dos escritores planos já ameaçou desaplanar, já atravessou a fronteira da terceira dimensão, mas voltou rapidinho — assustadíssima — pro conforto da Terra Plana, pro sossego da Planolândia

É a vida

A vida plana
Lanço em linguagem plana — pra que todos entendam — a teoria do escritor plano
Escritor plano:
Poeta ou ficcionista que vive de modo bidimensional na Terra Plana, também chamada de Planolândia
Escritor plano:
Publica obras achatadas, ganha prêmios horizontais, participa de eventos sem espessura
Vai um escritor plano
Sai de casa um escritor plano a investigar historicamente, sociologicamente, politicamente, a largura e o comprimento da sociedade plana
Outro escritor plano não sai
Outro escritor plano fica em casa a investigar intimamente, psicologicamente, filosoficamente, a largura e o comprimento de seu âmago plano
Coragem, palermas!
A literatura esférica é o raio tridimensional que arredonda a Terra Plana
É o raio tridimensional que faz os terraplanistas-satisfeitos-de-si entrarem em desespero bidimensional pra logo em seguida conhecerem a altura e a profundidade da iluminação esférica

Nada a ver, tudo haver
Foi pelo ralo minha última esperança de viver pra sempre quando eu descobri que até os imortais da Academia Brasileira de Letras morrem.

Neste momento gravíssimo, precisamos enfrentar corajosamente um assunto muito sério. Ilda Ilst. Essa é a pronúncia correta. Não é Rilda Rilst. Não é Rilda Ilst. Não é Ilda Rilst. É Ilda Ilst. Oswáld de Andrade. Essa é a pronúncia correta. Não é Ôswald de Andrade. Não é Oswál de Andrade. Não é Oswaldo de Andrade. É Oswáld de Andrade.

A atualidade é mais rápida, muito mais rápida do que as atualizações.

Ao acordar, o dinossauro ainda estava lá. O dinossauro, a máquina do tempo, os seres gasosos dos pantanais de Canopus. E a realidade inexorável da realidade, essa nuvem maciça que a gente sempre tem de enfrentar, principalmente quando tentamos fugir dela.

A função da História não é nos informar e assim impedir que as atrocidades do passado voltem a acontecer. É nos informar e logo avisar que elas acontecerão novamente, de um jeito ou de outro. A coitada da História está sempre dizendo: “Se preparem, viu? Ou não se preparem, porque o resultado será o mesmo”.

As grandes batalhas, as batalhas decisivas, são sempre secretas e silenciosas.

Ninguém é perfeito, exceto o perfeito idiota.

A inteligência trouxe a escuridão. Antes do sapiens, o mundo era metade luz (dia), metade escuridão (noite). Até o sapiens evoluir e descobrir, aterrorizado, que o mundo são voláteis centelhas de luz num vasto oceano de escuridão sem fim.

O desagradável nas pessoas é que são pessoas. Queria tanto conhecer uma pessoa — umazinha só — que não fosse exatamente uma pessoa.

Tudo o que eu e você temos a dizer já foi dito. Tudo o que eu e você não temos a dizer também já foi dito. Bem dito ou mal dito, tudo o que já foi dito inclui o que eu e você temos e não temos a dizer.

Minhas semanas me presenteiam com mais soluços do que soluções.

Honestidade o tempo todo? O tempo todo?! Isso não me parece muito honesto.

Confúcio era um imbecil. Escolha um trabalho que você ame e você passará a odiá-lo todos os dias de sua vida. Principalmente se pagar mal.

Basta existir pra já querer desistir.

Sou graduado em matemática, com pós-graduação em estatística. Hoje faço bico de cartomante. Sempre digo pras pessoas que vai dar tudo errado. Minha taxa de acerto é altíssima.

Qualquer coisa que a gente não viu nascer e não verá morrer é infinita. Tipo o sol e a estupidez humana.

Não existem desfechos. Todos os finais acabam num abismo sem fim.

Com muito esforço eu consegui convencer o planeta inteiro de que a cor azul é mais bonita que a vermelha. Enfim, o consenso universal! Não… Agora brigam pra decidir entre o azul-celeste e o azul-marinho.

Certas pessoas cultivam um invencível pensamento-labirinto. Entrar numa discussão com elas é se perder pra sempre.

No verão, o inverno são os outros?

Um tufão arrasa a Flórida e a borboletinha em Xangai acredita que foi seu bater de asas que provocou o desastre. Em vez de Efeito borboleta eu chamaria isso de O delírio de grandeza do zé-povinho.

Estamos assistindo ao combate titânico entre verdades e mentiras. As mentiras conseguem colaborar, reunindo-se numa poderosa e duradoura Mentira. Mas as verdades, coitadas, dada a sua natureza múltipla e contingente, não conseguem se reunir numa poderosa e duradoura Verdade.

Ódio atrai tudo, até amor verdadeiro.

O cidadão precisa desligar o piloto automático do próprio cidadão. A sociedade precisa desligar o piloto automático da própria sociedade.

Poeta e ficcionista, quando inicia uma carreira acadêmica, acaba igual a um gato doméstico: castrado, mijando e cagando apenas na caixa de areia.

Você percebe que está numa festa lotada de idiotas. O que você faz? Fica na festa? Vai pra outra festa cheia de idiotas? Organiza tua própria festa sem idiotas? Agora troque festa por país.

As pessoas que escrevem livros escrevem livros basicamente sobre pessoas. As pessoas que fazem filmes fazem filmes basicamente sobre pessoas. As pessoas que compõem canções compõem canções basicamente sobre pessoas. Que obsessão doentia! É o cúmulo do narcisismo! Tanto assunto mais interessante no universo… E a gente achando que as pessoas criativas são realmente criaturas criativas…

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho