Padre Vieira, o índio e a Segunda Escolástica

A inclusão do índio pela Igreja tinha como contrapartida o reconhecimento do chamado “direito missionário”
Ilustração: Rafael Cairo
27/05/2019

 

Em grande parte, a visão do padre Antonio Vieira (1608-1697) sobre o índio retoma posições defendidas pela chamada Segunda Escolástica, no século anterior. É o caso da insistência na obrigação evangélica de “pregar a toda criatura”, em contraposição às teses que consideravam inútil catequizar o índio por lhe faltar inteligência e capacidade espiritual. Para Vieira, como para os escolásticos, a conversão era dever religioso inalienável do conhecimento dos novos povos, pois, ainda que gentios, estavam incluídos na lei natural da Criação que fazia todo homem apto a pertencer ao grêmio da Igreja, submeter-se ao Império cristão e alcançar a salvação.

A inclusão do índio pela Igreja tinha como contrapartida o reconhecimento do chamado “direito missionário”, que os teólogos deduziam do mandado bíblico de “pregação a toda criatura”. Assim, o dominicano Francisco de Vitoria, no De Indis, afirma que “os cristãos têm o direito de pregar, de anunciar o Evangelho aos bárbaros em todas as regiões”, e, no De Temperantia especifica que “se a pregação for impedida, os espanhóis podem aceitar ou declarar a guerra, por causa disto, se for necessário”. Ou seja, assim como os índios não podem ser excluídos do direito natural e das gentes, tampouco podem, sob pena de “guerra justa”, impedir a ação missionária, causa providencial da vinda dos cristãos ao Mundo Novo.

Se não há impedimento do direito missionário, apenas a prédica pacífica é justificada. Mas não se trata apenas disso: o cativeiro em si mesmo é crime, pois, segundo os escolásticos, a condição natural de todo homem é a de ser livre, uma vez criado por Deus à sua imagem e semelhança. A coação violenta apenas agrava o crime, em termos temporais e espirituais. Compreende-se então por que Vieira se sente autorizado a interpelar assim o auditório maranhense no Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, de 1653:

Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal, todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vos ides diretos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida.

Em muitos passos de seus discursos, Vieira anuncia efeitos desastrosos da manutenção dos cativeiros injustos, tanto para os senhores particulares como para o governo da Colônia. No sermão citado acima, ele diz: “Sabeis quem traz pragas às terras? Cativeiros injustos. Quem trouxe ao Maranhão a praga dos holandeses? Quem trouxe a praga das bexigas? Quem trouxe a fome e a esterilidade? Estes cativeiros”. E é ainda mais duro em carta dirigida ao Rei D. Afonso VI, em 1657, responsabilizando-o pela prática injusta do cativeiro:

Senhor, os reis são vassalos de Deus, e, se os reis não castigam os seus vassalos, castiga Deus os seus. A causa principal de se não perpetuarem as coroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça, ou são as injustiças, como diz a Escritura sagrada; e entre todas as injustiças nenhumas clamam tanto ao céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres, e as que não pagam o suor aos que trabalham.

Em relação à coação violenta dos índios, já na Carta Ânua, de 1624, Vieira afirmava que os índios ficavam melhor “cativos” do “bom trato e conversação”, o que admitia a posição escolástica de que fossem dotados de entendimento e capacidade de aprendizado da doutrina cristã. Era uma posição oposta à defendida pelas principais Monarquias europeias alinhadas com as teses do teólogo John Major, Juan de Quevedo e Juan Ginés de Sepúlveda, que aplicavam ao índio o conceito de “servo por natureza”, cuja origem remonta a Aristóteles no Livro primeiro da Política.

Para Vieira, a condução do gentio à Igreja, por meio da prática cristã, do conhecimento da doutrina e da recepção dos sacramentos, representava a mais alta finalidade do descobrimento, o que tem uma dupla implicação. A primeira é que a conversão era entendida como possível e necessária, sendo o gentio apto a receber a revelação divina e gozar a bem-aventurança, que apenas lhe era negada pela circunstância da sua ignorância de Deus e do seu estado atual de separação do corpo da Igreja. A segunda, que a salvação do índio dependia de sua integração ao corpo místico de Cristo, franqueada pelas práticas autorizadas do sacerdote. Numa frase: para Vieira, fora da Igreja, não havia salvação —, o que também implica dizer que a condenação que fazia da coação violenta não significava aceitação de qualquer relativismo religioso. O padre Vieira desgraçadamente não leu Lévi-Strauss.

Lembro ainda que os escolásticos que pensaram a Conquista estavam sobretudo preocupados com um grande movimento de ordenação interna da Igreja, após o cisma protestante. A ideia de integração do gentio tanto na “comunidade sobrenatural” como na “unidade jurídico-moral” da Igreja, é uma posição cabalmente distinta daquela adotada, nos séculos anteriores. Face ao gentio maometano, por exemplo, a questão era destruí-lo como ameaça ao corpo universal do Orbis Christianus, e não “compeli-lo a entrar” nesse corpo cuja universalidade, doravante, passava a depender de seu ingresso. A obrigação da conversão, estranha às Cruzadas ou à Reconquista, é uma grande novidade das Descobertas: um fenômeno da fundação da chamada Era Moderna.

Outras posições de Vieira são adotadas da Segunda Escolástica. Por exemplo, quando ele se opõe à ideia de que a existência entre os indígenas de práticas consideradas “contra-natura” (como a poligamia e o canibalismo) fornecia “causa justa” de guerra. Isto porque, de acordo com os escolásticos, tais práticas não significavam má disposição inata do indígena, mas sim costumes viciosos que podiam ser corrigidos mediante conversão e ensino. “Muitos há muito rudes e bárbaros” — escreve Vieira ao Provincial do Brasil, em 54 —, “mas por falta mais de cultura que de natureza”.

Quer dizer, “mau costume” e “ignorância invencível” — isto é, impossibilidade lógica de os índios conhecerem a doutrina que ainda não lhes havia sido ministrada — são atenuantes que o jesuíta postula contra as tentativas de caracterizá-los como monstruosos ou desumanos. Sem horror, aliás, Vieira relata que os índios das nações da ilha dos Joanes (atual Marajó), ao “tomarem nome”, quebraram a cabeça de treze padres e “depois de mortos os assaram e comeram como costumam”. Não se trata apenas de idiossincrasia da lábia vieiriana: a maioria dos teólogos neotomistas já havia tratado da “ignorância invencível” como argumento que relacionava crime e costume, impedindo-o de caracterizar-se como defeito inato e irreversível.

É preciso ter claro, portanto, que Vieira inscreve-se no quadro de um pensamento católico que, em meados do século 17, já não é novidade. Segue-se que não é o caso de chamá-lo de “pré-iluminista”, como foi feito tantas vezes, pois nem ele é “avançado” em relação ao seu tempo, nem busca qualquer finalidade contestatória ou transgressiva em relação à instituição eclesial. O lugar-chave da sua atuação foi sempre o incremento das missões jesuíticas como condição do êxito tanto da ação espiritual da Igreja como do fortalecimento temporal do Estado português.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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