A luta verbal

Lima Barreto e a batalha contra o preconceito
Lima Barreto, autor de Recordações do Escrivão Isaías Caminha
27/05/2019

Episódio racista, contaminado com o desprezo pelos afrodescendentes, marca de forma aprofunda não só o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, mas sobretudo a obra denunciadora de Lima Barreto, eivada de doses decisivas de ironia, sobretudo por meio daquilo que costumo chamar de perfil físico-psicológico, em que o intelectual descarrega sua revolta e sua dor num momento em que começamos a lançar as bases de nossa formação racial.

A cena a que me refiro ocorre no segundo capítulo do romance, quando Isaías Caminha viaja em busca do Rio de Janeiro. Depois de abandonar a cidadezinha onde nasceu e mora com a família — pai, mãe, tio e tia —, viaja em busca do futuro, convencido de que é o único caminho que lhe resta. Segue de trem, tomado por incrível melancolia — seu estado mental mais permanente, o que significa justamente a sua desilusão com a vida brasileira e a perspectiva para os afrodescendentes.

O trem faz uma parada — de tantas outras que já fizera — e o jovem personagem aproveita para fazer um lanche rápido, o que de fato acontece. O troco demora e ele reclama. O atendente, irritado, diz que ali não se rouba, numa referência direta à cor do personagem, conforme o seu entendimento. Ele se afasta e outro rapaz, louro, desta vez, faz a mesma reclamação, e é atendido imediatamente. Fica profundamente decepcionado e se retira tomado de uma grande mágoa. Pessoas próximas fazem comentários e parecem concordar com o ofendido, que reitera sua mágoa e a sua dor, mesmo que não faça observações em voz alta.

Tudo isso acentua a melancolia de Caminha, já agora em estado permanente de sua personalidade, conforme se verificará na descrição dos cenários, às vezes trabalhado geometricamente, na maioria das vezes tristes e agônicos, algo que se tornará inevitável deste magnífico romance de formação, por assim dizer.

A cena é a seguinte:
O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota para pagar. Como se demorassem a trazer-me o troco, reclamei: “Oh”, fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. “Que pressa tem você?!” “Aqui não se rouba, fique sabendo”. Ao mesmo tempo a meu lado, um rapaz alourado, reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação. Curti durante segundos. Uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou em pranto. Trôpego e tonto, tentei decifrar a razão da diferença dos dois tratamentos. Não atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a minha pessoa… Os meus dezenove anos eram sadios e poupados, e o meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros largos e os meus membros ágeis e elásticos. As minhas mãos fidalgas com dedos afilados e esguios eram heranças da minha mãe, que as tinha tão valentemente bonitas e que se mantinham assim, apesar do trabalho manual a que sua condição a obrigava. Esmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem extraordinariamente regulares, eu não era nem hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez pronunciadamente azeitonada.

Além de tudo, eu sentia que a minha fisionomia era animada pelos meus olhos castanhos, que brilhavam doces e ternos nas arcadas superciliares profundas, traços de sagacidade que herdei do meu pai. Demais, a emanação da minha pessoa, os desprendimentos da minha alma, deviam ser de mansuetude, de timidez e bondade… Por que seria, então, meu Deus?

Nestes momentos fica fácil observar os três elementos que formam uma cena:

• Personagem: O trem parara e eu abstinha de saltar; uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação; tive fome e dirigi-me ao balcão, onde havia cafés e bolos; encontravam-se lá muitos passageiros.

• Ação: servi-me e dei uma pequena nota pra trocar.

• Sequência: Como se demorassem trazer o troco.

A partir daí Isaías torna-se magoado e, mais uma vez, usa o olhar do personagem para interpretar seus sentimentos que se voltam para ele mesmo, dividindo o texto em dois planos: no primeiro há o episódio de racismo com breves comentários, e o segundo realiza um perfil físico psicológico que substitui, por exemplo, um solilóquio ou um monólogo interior, que concede maior realismo a romance, e reforça, sobretudo, a questão do racismo, de forma mais consistente.

Chamo a atenção para a técnica do olhar do personagem que faz com que emoções e sentimentos se apresentem nas cenas e nos cenários, evitando discursos íntimos, e fazendo crescer a força narrativa em que os personagens atuam e não somente pensam. É assim que Recordações torna-se um clássico da literatura brasileira.

Raimundo Carrero

É escritor. Autor, entre outros, de Seria uma noite sombria Minha alma é irmã de Deus. 

Rascunho