Legado eterno

Em "Lições dos mestres", George Steiner se debruça sobre as nuances do ensino e aprendizado
George Steiner, autor de “Lições dos mestres”
30/04/2019

Talvez seja um caso de verdadeira sincronicidade a Record relançar Lições dos mestres, um grande ensaio resultante de seis conferências proferidas pelo crítico literário americano George Steiner na Universidade de Harvard. De fato, nunca foram tão acirradas (nem deprimentes) as discussões em torno da relação professor/aluno e do próprio conceito de aprendizado e conhecimento.

É, assim, revigorante ver o tema tratado em sua real dimensão — não menos que vasta — sem ranços ideológicos e, principalmente, com honestidade intelectual ímpar — sem a pretensão de esgotar o tema:

O tema desafia qualquer estudo abrangente (…) Os capítulos (…) propõem-se a oferecer a mais sumária das introduções; são quase absurdamente seletivos

Também por isso o leitor se vê instigado a refletir sobre um dos temas mais elementares da humanidade sem que se constranja a endossar os, por vezes, polêmicos posicionamentos de Steiner sobre a questão.

Um prisma desafiador
Por mais fora de moda — e o fato é doloroso — que o termo “mestre” pareça estar, Steiner não hesita em utilizá-lo, envolvendo grande extensão que compreende não só as concepções de diferentes épocas e regiões, mas também o igualmente insidioso termo “professor”. Tarefa árdua. Para levá-la a cabo, opta pela via diacrônica, num percurso que tem início em Pitágoras e Sócrates, e desemboca na atualidade da web, na hegemonia da informação sobre a especulação intelectual e no declínio das relações mestre/discípulo. O livro não assume com isso um tom didático: o que faz Steiner é refletir, por vezes divagar, em concepções diversas, comentando-as, analisando-as com profundidade, lançando mão de um vasto arcabouço erudito e, bem ao estilo de um professor acadêmico, se deixando levar por digressões ocasionais, o que certamente desafia o leitor comum. Sua prosa exigente instiga a reflexão, mas é clara e objetiva.

O tema é prolífero e Steiner o explora amplamente. A relação entre mestre e discípulo é o eixo, nascido da própria inquietação do autor, que é um acadêmico. Mas o que torna alguém um mestre? O que significa o aprendizado? Há imposições político-sociais determinando o que cabe ser aprendido? O leitor passará por essas e muitas outras questões. O próprio eixo do tema, como um feixe atravessando um prisma, resulta em diversas tonalidades: o mestre exigente, a seletividade na escolha do discípulo, a fidelidade deste ao que é ensinado, ou sua superação, ou traição, ou simples ingratidão. Ciúme, inveja, mesquinhez, amor e até erotismo são as variantes nessa complexa equação envolvendo esses dois polos opostos.

Muitas dessas nuances são reveladas já de início, na relação homoerótica frustrada entre Alcibíades e Sócrates, no Banquete de Platão: 

Na verdade, o pensamento socrático é homoerótico (…) Professores de filosofia precisam, por vezes, livrar-se de suas mulheres: o drama de Althusser é um exemplo (…)

O erotismo, disfarçado ou declarado, fantasiado ou realizado, está entretecido no magistério, na fenomenologia das relações entre mestre e discípulo.

Nota-se acima que: 1) a avaliação não está presa ao contexto da antiguidade grega; 2) até por isso, Steiner corajosamente não foge da polêmica.

Ainda no contexto antigo, a oralidade é tópico importante. Ela define o método do mestre e sua relação com o discípulo. É conhecido o pouco apreço de Sócrates pela escrita; Platão, seu discípulo, o herda, de forma ambivalente. Cristo, como se sabe, nada registrou por escrito à posteridade. O autor reflete aqui sobre as potencialidades da transmissão exemplar. Segundo Sócrates, “o verdadeiro ensino é pela via do exemplo”.

No capítulo Chuva de foto, que invoca o tormento a que Dante cruelmente condena seu mestre Brunetto Latini num dos círculos do inferno, as reverberações do diálogo neoplatonismo/cristianismo se fazem sentir nas obras de Plotino e no mesmo Dante. Instigante, em especial, a análise sobre o poeta e a tríade de seus mestres na peregrinação na Comédia (Virgílio, Brunetto e Beatriz). O livro transita livremente entre a realidade e o universo ficcional, numa exegese própria de um grande crítico literário. Exegese que abarca a tumultuada relação discípulo/mestre em obras como os Faustos de Marlowe e Goethe, e segue para o melancólico caso Husserl/Heidegger e as afinidades de casos tão distantes no tempo e espaço como Abelardo/Heloísa e Heidegger/Hannah Arendt. Naquele caso, a mútua admiração cede à traição, ingratidão e amargura; já nos demais as relações de discipulado enraizadas em eros encobrem uma hierarquização impositiva, onde o mestre não vê a amada/aluna como alguém de igual estatura intelectual.

Contudo, em capítulos como Maîtres à penser e Em solo nativo a análise se expande ao macrocosmo, isto é, enfoca-se as idiossincrasias de países tão díspares entre si quanto França (no primeiro caso) e Estados Unidos (no segundo) na tentativa de apreender o próprio conceito de “mestre” nesses países. Assim Steiner diagnostica a França pós-revolução:

O Gymnasium alemão (…) os padrões de qualidade das pesquisas e das publicações eruditas haviam criado uma casta de intelectuais que deixava exposta a frivolidade e o amadorismo descuidado dos costumes franceses no Segundo Império.

Mas, às vésperas da belle époque, nos aponta Steiner, o Caso Dreyfus se encarrega de incitar os espíritos franceses, pondo a nação de volta ao rumo certo. Assomam então intelectuais como Jules Lagneau e Émilie-Auguste Chartier. Também se beneficiará do lume vizinho alemão, na figura de filósofos como Nietzsche, para aportar na modernidade como um dos luminares essenciais do mundo.

Já no capítulo Em solo nativo, a pátria de Ralph Waldo Emerson é enfocada em seus curiosos rumos. Até certo ponto indiferentes ao Gymnasium alemão e às grandes écoles francesas, os americanos optaram por uma via própria, em seu já conhecido pragmatismo. Mestres como Henry Adams e Nadia Boulanger ganham relevo. Seguindo o rastro de certas singularidades americanas, Steiner versa sobre grandes do esporte, como Knute Rockne, e alerta sobre “duas tendências ou patologias” que “têm erodido a confiança entre mestre e discípulo” recentemente.

O eros no magistério tem embaralhado as relações em salas americanas. O jogo de poder e submissão que desemboca em assédio torna patente um elemento incômodo já presente nos primórdios ocidentais da pedagogia: o erotismo. Outro fator preocupante para o autor é o triunfo do “politicamente correto” nas universidades americanas. Crítico resoluto do fenômeno, como Harold Bloom, Steiner deplora com semelhantes predicativos “a abstenção da ironia”, a exaltação artificial de “textos de má qualidade” e a institucionalização de “pseudo-currículos sacrificando-se disciplinas indispensáveis, criando-se não uma libertação e sim guetos para os afro-americanos ou para os chicanos”.

Por fim, o livro encerra com a inquietação num mundo no qual “o software está internacionalizado e a consciência terá que criar uma segunda pele”. Mas para o autor a forma elementar e tradicional sempre terá seu lugar:

Nenhum meio mecânico, por mais eficiente que seja, nenhum materialismo, por mais triunfante, pode erradicar a aurora que experimentamos quando compreendemos um Mestre.

A mesma sensação pode ser encontrada em Lições dos mestres, cujas dimensões a presente resenha apenas tangenciou. Eis um livro necessário, mormente no contexto nacional em que vivemos.

Lições dos mestres
George Steiner
Trad.: Maria Alice Máximo
Record
196 págs.
George Steiner
Nasceu em Paris, em 1929. Licenciado pela Universidade de Chicago, mestre pela Universidade de Harvard e doutor pela Universidade de Oxford, integrou a equipe editorial da revista Economist e trabalhou no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton. Professor emérito, já lecionou em Oxford, Stanford, Princeton, Harvard, Yale e Genebra. É autor de diversos livros, entre eles Nenhuma paixão desperdiçada.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho