Uma distopia de corpo inteiro

"Sob os pés, meu corpo inteiro", de Marcia Tiburi, fala de angústia e dialoga com a atualidade brasileira
Marcia Tiburi, autora de “Sob os pés, meu corpo inteiro”
30/03/2019

Sob os pés, meu corpo inteiro é um livro sobre o hoje. Marcia Tiburi escreve uma distopia e atualiza ainda mais a sua literatura. Por meio da personagem principal, Alice, depois transformada em Lúcia, descreve distopicamente um Brasil dopado, com uma sociedade atordoada sofrendo com uma seca brutal, com o severo controle do Estado sobre a vida privada da população e à rapina de uma elite política.

A todo esse atordoamento, angústia. O desafio da autora é o de traduzir esta angústia de modo a tocar o leitor. Para tanto, não economiza nos períodos, alongando-os sempre que necessário, para expressar os pensamentos da protagonista. Com a narrativa em primeira pessoa, prende ainda mais o leitor ao relato apresentado por meio das impressões de Lúcia, outrora Alice. Isso não é por acaso. Pois, conforme o desenrolar da trama, é fundamental ter os olhos da principal personagem para o entendimento de tudo e, de modo ainda mais elementar, a compreensão dos fatos.

O complexo mundo se revela por meio da complexa mente de uma personagem marcada pelo passado vivido naquilo que julga ser a sombra de sua gloriosa irmã, Adriana. O surgimento de Betina, supostamente filha de Adriana, morta na ditadura militar, adquire grande dimensão na medida em que Lúcia interpreta constantemente sua relação com a irmã à luz dos acontecimentos autoritários vivenciados no Brasil — bem como da imprescindível relação com a família.

No caso, o que está em jogo é um debate em torno de temas fundamentais na contemporaneidade. A trama de Sob os pés, meu corpo inteiro, ao sublinhar a complicada relação entre as irmãs e a constituição da personalidade de Alice, revela, na verdade, uma crítica à perspectiva da família tradicional. Isso se torna ainda mais veemente quando ela, posteriormente, no exílio, casa-se com Manoel. Do casamento, uma fachada. Por trás, angustiantes passados; a fuga. A existência de uma instituição como a família não significa amparo afetivo consistente, tampouco individualidades perfeitas ancoradas nos valores da família burguesa tradicional. Parece óbvio. Porém, em tempos de defesa de ideias assaz reacionárias, nem tanto.

Lúcia se revela ao leitor por meio de suas impressões. Em um primeiro momento, não é heroína. Mostra-se como uma pessoa comum, de vida comum, distante de debates e questões políticas — pujantes em tempos autoritários. Aos seus olhos, permanece à sombra de Adriana. Mas, adiante, é varrida pelos acontecimentos, tal como pode acontecer com qualquer “pessoa comum” (agora com aspas).

A interpretação que Lúcia faz de seu próprio passado, conjugado com sua relação com a irmã, desponta em seu encontro com Betina. Os fatos vêm à tona através de pensamentos. Daí a conveniência de não haver um tempo cronologicamente organizado por meio da sucessão de acontecimentos. Para cada pequeno traço de sua personalidade, que pode soar inicialmente como algo injustificável, um dado pretérito, forte, marcante. E, enquanto recurso narrativo, a autora o faz destacar por meio do aguçado abuso de superlativos, adjetivos a qualificarem e intensificarem situações específicas. Aqui, mais que em qualquer outro momento, o leitor se sente tocado. Ele agora deseja ouvir os relatos de Lúcia, por mais chocantes que possam ser.

Na sala de tortura, esse cenário bizarro com personagens indescritivelmente maus praticando a abjeção e as vilezas mais torpes, ocupei o lugar da personagem inessencial, aquela que será destruída assim que necessário. Aquela que será obrigada a permanecer viva quando morrer significaria, paradoxalmente, uma libertação. Eu, a personagem inessencial de uma narrativa de abjeção. A abjeção que visa a tornar o corpo algo repulsivo e, por meio dele, o espírito.

Martírio
Tal recurso se mostra bastante forte, principalmente nos relatos de episódios de tortura. Afinal de contas, estamos diante do martírio de uma “pessoa comum”. A esse martírio, o seu posicionamento no mundo atual, com todos os traumas que dele advém. São os episódios da vida de Lúcia, relatados por meio de suas impressões, que fundamentam os acontecimentos da trama.

O livro apresenta um desfecho surpreendente que impacta o leitor apenas se ele estiver atento a tais aspectos subjetivos, presentes em Lúcia. O embaralhamento de sua vida com a da admirada irmã, Adriana, é ponto central para esse entendimento. Ele se mostra de modo sutil, mas vigoroso, ao longo de todo o texto, de toda a história. Em alguns dos momentos, após a leitura, o próprio leitor fica — propositalmente — confuso, sem saber exatamente se um determinado fato se passou com Lúcia ou com Adriana. E essa confusão é essencial.

Aprendo a ocultar Adriana, a dona da história que não me pertence, a história que herdo, a história de um paradoxo, a história de minha vida, uma vida não vivida. A história à qual Adriana não teve direito. A história que tampouco eu cheguei a viver.

O logro de Marcia Tiburi na manipulação dos recursos narrativos para a construção da trama parece simples. Mas não o é. O escritor menos astuto pode se perder facilmente na construção dessas frases longas, na tentativa de expressão de sentimentos intensificados, fugindo do eixo central da história. Ou mesmo, devido à sua intensidade, fracassar em coaduná-los com a personalidade da protagonista. Isso não ocorre no texto de Marcia. Aliás, a interpretação das circunstâncias sociais e políticas do Brasil depende diretamente das impressões de Lúcia. Não há história sem a sua história, sem a sua forma de ver a história, sem o seu sofrimento.

Falando agora sobre o diálogo do livro com a contemporaneidade, Lúcia, em verdade, é uma personagem que transmite angústia. Ora, em tempos atuais, é impossível a literatura brasileira se mostrar infensa a tais angústias. Elas estão presentes arrombando as portas das casas das “pessoas comuns”.

As personagens de Sob os pés, meu corpo inteiro, de modo geral, viveram um período autoritário. Trazem suas marcas em um momento de miséria na imensa São Paulo de muros pintados de cinza pela insanidade de um prefeito. Contudo, à luz dos fatos atuais de nossa realidade, à leitura do livro, temos a impressão de que o período autoritário vivenciado pelas personagens não é um passado para quem lê a obra. Mas, sim, o futuro. Eis a verossimilhança.

Lúcia, da maneira como se nos é apresentada, reflete as consequências de um autoritarismo e de uma insensata perseguição sofrida — nenhuma ditadura é sensata. Ou seja, a autora, na verdade, acaba ligando um sinal de alerta entre os seus leitores por meio de sua literatura — por isso o conveniente recurso à distopia. Ali ela imagina como um Brasil rendido ao “carisma” da intolerância pode terminar e, consequentemente, onde podemos parar.

Ser desconectado de questões políticas não exime ninguém de suas consequências. Tampouco das nefastas consequências de um autoritarismo. Pelo contrário, o indivíduo sofre, carregando marcas visíveis em seu corpo. Enfim, não precisa ser militante para que tal sofrimento surja de modo claro. Em um mundo que se anuncia nada democrático, repleto de perseguições, somos todos Lúcias.

Sob os pés, meu corpo inteiro
Marcia Tiburi
Record
181 págs.
Marcia Tiburi
Estudou artes e filosofia. É autora de ensaios filosóficos, entre eles Filosofia em comum, Filosofia prática, Como conversar com um fascista, Ridículo político e Feminismo em comum, além dos romances Magnólia, Era meu esse rosto e Uma fuga perfeita é sem volta.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

Rascunho