A poética de um expatriado

Nos poemas de Agora vai ser assim, Leonardo Tonus explora o precário panorama global da existência
Leonardo Tonus, autor de “Agora vai ser assim”
28/01/2019

Ao longos dos últimos anos, Leonardo Tonus se tornou uma das figuras mais respeitadas e importantes do círculo literário brasileiro. Natural de São Paulo, consolidou sua carreira acadêmica após estudar Letras Francesas e Germânicas no exterior e, em seguida, conseguir uma cadeira como docente nas áreas de Teoria Literária, Literatura Brasileira e Comparada na Paris-Sorbonne.

Autor de inúmeros artigos e estudos acerca do papel do imigrante na literatura, além de conduzir nos últimos anos um projeto que leva autores da literatura brasileira contemporânea para dentro da Sorbonne, Tonus estreia na literatura com Agora vai ser assim. A obra reúne um conjunto de poemas cujo mote central é sua relação íntima de expratriado, sob um olhar analítico ante o choque de viver em um mundo ainda atravessado por violência, intolerância, guerras e total descompromisso para com o outro.

Em entrevista ao Rascunho, concedida por e-mail, Leonardo Tonus conta com detalhes sobre o processo de elaboração do recente livro, o sentimento de expatriado e não pertencimento geográfico, os interesses estéticos voltados à literatura e à pesquisa acadêmica, além do projeto de divulgar a literatura brasileira entre os estudantes universitários da Europa.

• Como surgiu o interesse de escrever um livro de poesia e por que esse gênero?
Há muitos anos o exercício da escrita faz parte do meu cotidiano. Até então tratava-se de uma atividade discreta, que, realizada isoladamente distante do olhar alheio, buscava dar sentido a uma certa incompreensão face ao mundo. Nos últimos dois anos esta atividade intensificou-se, como também meu espanto diante da história, das catástrofes ecológicas, da emergência dos discursos totalitários, diante da crise humanitária dos migrantes, da morte de Aylan Kurdi ou das vítimas do terrorismo. As palavras, no entanto, começaram a faltar, tornando-se escassas quando não obsoletas e desprovidas de sentido. Lembro-me muito bem da sexta-feira de 13 de novembro de 2015 e do sentimento de paralisia que tomou conta da sociedade francesa, após o ataque ao Bataclan. A morte das inúmeras vítimas, dentre as quais três estudantes da universidade em que leciono, seguiram-se diversos apelos à resistência. Lembro-me de receber uma mensagem da reitoria de minha universidade pedindo para que todos os professores nos apresentássemos aos estudantes logo após o fim do luto oficial de três dias, decretado pelo governo. Pelo ato de resiliência buscava-se não ceder ao pânico e, sobretudo, não ceder ao esvaziamento do pensamento crítico que atos violentos como estes podem engendrar. Se o trauma é o agente da resiliência, como praticá-la através das palavras? Como praticá-la naquele exato momento sem mascarar a dor, cooptá-la ou retirar dela sua carga traumática? Por outro lado, o que de mim e de meus parcos conhecimentos sobre a vida esperavam meus estudantes? De que maneira minhas palavras poderiam contribuir ao apaziguamento de uma dor coletiva e individual? Como posicionar-me face a eles? Deveria para tal servir-me da postura do pesquisador apoiando-me em sólida argumentação teórica ou expressar-me simplesmente enquanto cidadão a partir de minha subjetividade? Tais questões atravessam, em grande parte, os poemas de Agora vai ser assim, que pontuam o que chamo “do esturpor da primeira vez face ao terror” antes dos procedimentos de esquecimento ou de neutralização da carga traumática. Situo-me aqui voluntariamente contra o ocultamento da memória traumática que permeia nossa história e memória coletivas e individuais: aquela que evoca a trágica história das migrações, da escravatura, das catástrofes naturais, aquela que é incapaz de expressar a nossa relação com a morte, com o envelhecimento ou com o amor. Isto explica o tom e a forma que confiro a meus textos que se situam, em grande medida, no cruzamento entre diversos gêneros.

• Além do interesse pelo experimentalismo formal, no livro surgem temas relacionados à infância, à guerra, ao expatriamento e às minorias sociais. Os deslocamentos georgáficos e diferenças culturais entre Brasil e França influenciaram na construção do livro ?
Mais do que um distancimento em relação ao real, busco expressar em meus poemas um espaçamento diante do mundo. Obviamente a condição de estrangeiro que o acaso me impôs acabou por intensificar este sentimento que concebo enquanto posicionamente estético e ético. Muito tem-se debatido nos últimos anos sobre o lugar de fala das persongans e das vozes autorais na literatura contemporânea. Do mesmo modo tem-se questionado intensamente as modalidades de representação e de invisibilidade dos chamados grupos minoritários na e da produção artística recente. Tenho plena consciência do espaço privilegiado que ocupo na sociedade e dentro do campo literário. Nunca serei capaz ou saberei expressar plenamente a dor da voz de uma mulher negra ou de um migrante confrontado às atrocidades do mundo atual. Face a este impasse, cabe-me então, enquanto sujeito socialmente privilegiado mas cônscio do espaço que ocupo, alterizar minha voz, fragilizando-a para proporcionar ao outro, frágil e fragilizado, a possibilidade de uma escuta.

Tenho plena consciência do espaço privilegiado que ocupo na sociedade e dentro do campo literário. Nunca serei capaz ou saberei expressar plenamente a dor da voz de uma mulher negra ou de um migrante confrontado às atrocidades do mundo atual.

• Por que só agora decidiu publicar seu primeiro livro fora da vertente ensaísta e acadêmica?
Se a publicação da antologia intervém num contexto de crise humanitária planetária, ela responde, no que me diz respeito, a um questionamento epistemológico que mantém laços estreitos com minha pesquisa acadêmica. Desde meu mestrado debruço-me sobre a presença da imigração e a representação de seus atores na literatura brasileira. Após uma dissertação sobre Plínio Salgado e a emergência de um discurso fascista no âmbito do modernismo brasileiro, voltei-me no doutorado para a obra de Samuel Rawet, que, como sabem, é profundamente marcada pelo processo migratório. A tese de livre docência que defendo em 2016 retoma estas questões e interroga o reaparecimento do imigrante no contexto da transição democrática do Brasil. Trata-se aqui de observar a relação entre política, produção cultural e um discurso consensual pelo viés da imigração. Ao longo de minha pesquisa observo, com efeito, como o imigrante constitui uma das figuras centrais do imaginário nacional e da literatura brasileira desde meados do século 19. Apesar de clandestinos e refugiados constituírem um dos principais atores dos processos de deslocamento atuais, tais figuras permanecem relativamente ausentes do cenário mundial das letras e, em particular, do cenário brasileiro. A antologia que acabo de publicar responde, de certa forma, a esta ausência.

• A Printemps Littéraire Brésilien ou Primavera Literária Brasileira é um projeto voltado à ida de autores brasileiros a círculos de conversas em algumas universidades europeias. Como surgiu tal interesse ? E qual é o seu olhar enquanto curador deste projeto diante de um público estrangeiro que ainda desconhece grande parte da produção literária brasileira, sobretudo a contemporânea?
O projeto Printemps Littéraire Brésilien nasce em 2014 no âmbito de minha prática de ensino na Sorbonne. Trata-se de um encontro anual inicialmente idealizado para promover e ampliar a formação de estudantes de Letras inscritos nos cursos de português em instituições de ensino europeias. Em 2016, internacionalizei o evento conferindo-lhe um aspecto itinerante pelo espaço europeu e, a partir deste ano, transatlântico. Mais de uma centena de romancistas, contistas, poetas, quadrinistas, ilustradores, cineastas, dramaturgos ou artistas plásticos participaram do projeto desde a sua criação. Mas as dificuldades são várias, sobretudo no que tange à recepção de nossa literatura aqui fora. Para além da diminuição drástica de tradução de obras brasileiras, cabe aqui salientar a necessidade de se reconstruir a cadeia do livro brasileiro também fora do país. A política de internacionalização (ou exportação) do livro brasileiro não deve se restringir à presença de escritoras ou escritores em megaeventos internacionais, ou a simples tradução de suas obras. Ela deve se expandir para o conjunto do campo literário que compreende outros atores. Quem são eles? Editores, livreiros, distribuidores, bibliotecários e leitores. Não há política de internacionalização sem fomento à leitura, inclusive no exterior. A Printemps Littéraire Brésilien vem, em parte, preencher esta lacuna, trabalhando diretamente com um dos principais atores desta cadeia: estudantes inscritos nos cursos de potuguês em universidades e outras instituições de ensino fora do Brasil.

• O “não pertencimento” me pareceu presente do início ao fim do livro. Como o professor se sente vivendo essa experiência que o coloca como alguém estrangeiro permanentemente dentro de dois continentes distintos?
Eu me sinto como o cedro do filósofo Vilém Flusser: estrangeiro no meu parque, estrangeiro na França, estrangeiro no mundo. De fato, que relevância ainda há questionar-se acerca dos pertencimentos identitários no contexto da pós-modernidade? Como lembra Bauman, a noção de identidade é uma ficção forjada pelo Estado moderno. Somos seres atravessados por múltiplas identidades que vivem um constante não pertencimento. A experiência da expatriação só vem ressaltar este sentimento compartilhado, em minha opinião, por outros atores de nossa sociedade. Todo sentimento de pertencimento identitário é uma falácia que a literatura deve problematizar e desconstruir, interrogando o que o subjaz: a linguagem.

• Como é a sua rotina enquanto professor e pesquisador na Sorbonne?
Ela assemelha-se à rotina de qualquer outro professor e pesquisador universitário que trabalha com o ensino de uma língua e de uma cultura estrangeiras no exterior. Esta situação particular nos coloca diante de uma série de questões e escolhas pedagógicas e epistemológicas. Por um lado, fazer com que o ensino da língua seja concomitante ao aprendizado de uma cultura, evitando o apelo exótico apesar deste constituir muitas vezes o elemento desencadeador de interesse por parte de estudantes. Por outro lado, encontrar o justo equilíbrio entre o aprendizado canônico de uma cultura ou a sua extensão para outros campos. São estas questões, entre outras, que norteam as escolhas temáticas e epistemológicas de minhas aulas destinadas a estudantes de graduação e pós-gradução na Sorbonne.

• Qual é a sua visão sobre a produção que tem sido feita nos últimos anos no Brasil? Houve realmente uma mudança de trinta anos para cá? E o que te chama mais a atenção com relação à produção inserida num ambiente amplamente globalizado e em constate revolução tecnológica?
Cabe salientar o dinamismo da produção literária brasileira recente que nos últimos trinta anos soube se reinventar. Esta grande ruptura dá-se, em minha opinião, no início dos anos 1990, quando da chegada da internet e da emergência de novos canais de produção e divulgação da literatura. Mas esta ruptura não se limita à revolução tecnológica que atravessa o século 21. Ela verifica-se também, e sobretudo, na reconfiguração do campo literário e de seus pressupostos estéticos. Se o campo literário brasileiro conhece a partir dos anos 1990 uma verdadeira pluralização de seus atores (agentes literários, empreendedores culturais, novas editoras de pequeno e médio porte etc.), ele ainda permanece marcado por uma perspectiva social enviesada. Enquanto pesquisador associado do GELBC (Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea), da Universidade de Brasília, dirigido pela professora doutora Regina Dalcastagnè, participei do extenso levantamento estatístico sobre personagens e autoria na narrativa brasileira contemporânea. Seus resultados põem em evidência a pouca representativa de grupos marginalizados na produção romanesca recente, bem como as dificuldades de acesso ao campo literário, apesar dos inúmeros esforços dos últimos anos. Por fim, nítidas mudanças podem ser observadas do ponto de vista estético na produção nacional recente. Após o boom da estética hiperrealista dos anos 1990, do romance urbano e da metaficção historiográfica, noto o ressurgimento de uma literatura mais intimista, social e eticamente engajada.

• Qual é a sua visão enquanto brasileiro que vive no exterior sobre a atual crise moral, ética e econômica do nosso país?
É preocupante a situação do país cujos impactos são claramente perceptíveis no âmbito da cultura. Como não se alarmar perante o desmantelamento da nossa produção cultural com o fechamento de espaços culturais, o congelamento de editais do governo ou a simples liquidação de organismos fomentores de cultura? Como não se alarmar perante os movimentos de cerceamento ideológico que afetam diretamente a livre opinião e a atuação (e a própria sobrevivência) de nossas e nossos artistas ?

• Pretende publicar outros livros de poesia ou prosa no futuro?
Trabalho atualmente em um novo projeto de escrita que, como o anterior, dialoga com minha pesquisa acadêmica voltada para questões sobre as rupturas das transmissões patrilíneas e a experiência da ruína. Tenho verdadeiro fascínio por ruínas e por sua dimensão hermenêutica. Talvez venha a ser este o elemento norteador deste projeto que, ainda em fase incipiente, interroga os vestígios de nossa existência. Os textos estão nascendo livremente e aos poucos, sem que lhes imponha qualquer forma, gênero ou um direcionamento estético. Gosto destes momentos de liberdade e de disponibilidade que concedo à minha subjetividade. Neles se conjugam livremente o professor, o pesquisador, o escritor, o cidadão, o expatriado e tantos outros eus: o conjunto destas cascas que me revestem enquanto sujeito “no”, “pelo” e “do” mundo.

Agora vai ser assim
Leonardo Tonus
Nós
96 págs.
Márwio Câmara

É  escritor, jornalista e crítico literário. Autor de Solidão e outras companhias (Oito e Meio, 2017) e Escobar (Moinhos, 2021).

Rascunho