Convite à convergência (1)

Cultura popular, cultura de massa e cultura erudita
Ilustração: Teo Adorno
28/01/2019

Dirigir meus eus a um ponto comum — convergir — tem sido meu projeto literário desde que comecei a escrever ficção científica.

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Cultura popular.

Cultura de massa.

Cultura erudita.

Três famílias muito diferentes, quase sempre antagônicas, que se materializam quando pensamos em nosso vasto universo cultural.

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A cultura popular é a expressão genuína dos costumes e das tradições de um povo.

A cultura de massa é a manifestação maior da sociedade de consumo, filha da revolução industrial e do sistema capitalista de produção.

A cultura erudita é a expressão do pensamento mais crítico e sofisticado da elite política e econômica.

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Boa parte da teoria e da crítica mais sofisticadas sempre demonizou a cultura de massa e menosprezou a cultura popular, elegendo a cultura erudita o suprassumo de nossa realização intelectual.

Confesso que jamais endossei ou sequer compreendi essa estúpida atitude.

Reconheço a existência real dessas três instâncias culturais, mas jamais coloquei uma delas acima das outras. Pra mim, as três são e sempre serão igualmente valiosas.

Valiosas fornecedoras de obras-primas.

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As três esferas culturais são oceanos distintos, porém permeáveis. São países contrastantes, mas em suas fronteiras não existe uma muralha armada e intransponível.

As três esferas culturais sempre permutaram matéria-prima.

Muitos artistas e escritores eruditos criaram inegáveis obras-primas usando material da cultura popular e da cultura de massas, que também já produziram suas próprias obras-primas usando material uma da outra e da cultura erudita.

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Minha obra ficcional tem dois lados: a ficção fantástica e a ficção científica.

A ficção fantástica — às vezes chamada, na América Latina, de realismo mágico — é assinada pelo Nelson de Oliveira.

A ficção científica é assinada pelo Luiz Bras.

Não vejo qualquer diferença de valor estético entre um lado e o outro. No entanto, tenho consciência de que a ficção fantástica é muito mais respeitada e estudada, nos altos círculos literários, do que a ficção científica.

Os autores que me puseram no caminho da ficção fantástica foram inúmeros. Mas se me pedirem que indique apenas cinco livros, de todos os que foram marcantes em minha vida, eu indicaria:

Um médico rural, de Franz Kafka.
Macunaíma, de Mario de Andrade.
Histórias de cronópios e de famas, de Julio Cortázar.
O púcaro búlgaro, de Campos de Carvalho.
A casa do girassol vermelho, de Murilo Rubião.

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Os autores que me puseram no caminho da ficção científica também foram inúmeros. Mas se me pedirem que indique apenas cinco livros, de todos os que foram marcantes em minha vida, eu indicaria:

As crônicas marcianas, de Ray Bradbury.
Neuromancer, de William Gibson.
Santa Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett.
Amorquia, de André Carneiro.
Minority report, de Philip K. Dick.

Se Franz Kafka, Mario de Andrade, Julio Cortázar, Campos de Carvalho e Murilo Rubião são mais respeitados pelos altos círculos literários do que Ray Bradbury, William Gibson, Fausto Fawcett, André Carneiro e Philip K. Dick, então está na hora de discutirmos seriamente sobre a sacralidade dos tais critérios de legitimação empregados por esses altos círculos literários.

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Por que sempre perguntam a um escritor quais livros o influenciaram?

Apenas livros?!

Eu poderia citar dúzias de pinturas, músicas, fotografias, quadrinhos, coreografias, peças de teatro, filmes e séries que me influenciaram tanto quanto as obras literárias.

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O que mais me agrada na ficção fantástica e na ficção científica é a subversão das leis da natureza.

Num conto ou num romance, adoro quando a causalidade, a força da gravidade, a biologia, a geologia, a atmosfera, enfim, o tempo, o movimento planetário, os minerais, as plantas e os animais, as pessoas e as estações do ano passam a funcionar de maneira diferente da nossa familiar realidade.

Isso acontece também na ficção sobrenatural.

Na ficção sobrenatural, as pessoas se metamorfoseiam, ficam invisíveis, interagem com os mortos, trocam de corpo, viajam no tempo ou enfrentam criaturas impossíveis por meio de feitiços, maldições e encantamentos, ou seja, graças à magia.

Na ficção científica, as pessoas fazem as mesmas coisas por meio da engenharia genética, da mecânica quântica, da inteligência artificial etc., ou seja, graças à ciência e à tecnologia.

Na ficção fantástica, ao contrário, as pessoas fazem as mesmas coisas extraordinárias graças a nada e ninguém. Não há feitiços ou máquinas, feiticeiros ou cientistas, por trás dos fenômenos insólitos. Apenas as leis da natureza são diferentes.

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Dirigir meus eus a um ponto comum meio invisível — enfim, convergir para a virtuosa união: conteúdos incomuns numa forma incomum —, esse tem sido meu projeto literário mais maduro desde que comecei a escrever ficção científica.

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Nunca escrevi uma ficção sobrenatural.

Mas isso não está totalmente fora de meus planos.

(Precisarei criar outro alter ego.)

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Cinco livros de ficção sobrenatural que me agradaram bastante:

O homem da areia & outros contos, de H.P. Lovecraft
O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien
O iluminado, de Stephen King
Livros de sangue (volume 1), de Clive Barker
Deuses americanos, de Neil Gaiman

[Finaliza na próxima edição]

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho