Tradução: transições

São muitos os fatores e atores que incidem sobre o texto, no decorrer de sua vasta trajetória
31/01/2019

O texto vive processo contínuo de mutação. Vive em processo de transição. De um tempo a outro, de um local a outro, de um olhar a outro, de um leitor a outro, de uma língua a outra, de um tradutor a outro.

O texto anda em permanente transição. São muitos os fatores e atores que incidem sobre o texto, no decorrer de sua vasta trajetória. Nessa cadeia, o autor que assina o texto, apesar de inequívoca importância catalisadora, não deixa de ser um elo a mais — aquele que reúne e consolida ideias e trechos dispersos e/ou relativamente desconexos.

As transições textuais implicam contínua aflição para o tradutor. Como extrair da palavra muda toda a riqueza de significados nela armazenados ao longo de séculos?

Como estabelecer, de maneira decidida, os engates entre as palavras e seus sentidos mais adequados ao contexto? Como perceber as áreas de desgaste entre as palavras e seus sentidos, desgastes esses que acabam por transformar significados e operar revoluções na interpretação do texto?

São transições que afetam a percepção que o tradutor terá do texto. São transições que modulam, às vezes de maneira errática, as proporções do texto e do discurso em relação à realidade apreendida.

O texto, em sua transição permanente, caracteriza-se por extrema maleabilidade — como a do ar e da água, talvez. Capacidade que lhe permite retomar sua forma e seus sentidos mesmo em épocas, espaços e idiomas distintos. Capacidade que é a própria explicação da radical factibilidade da tradução, ainda que em condições maximamente desfavoráveis.

Esse estado de transição permanente decorre também do fato de que os significados não cabem — nem em sua extensão individual, nem em sua diversidade — nos contornos de cada palavra. Não. Pelo contrário. Espraiam-se irremediavelmente por palavras e frases, contíguas ou não. Dependem muito do aspecto relacional das palavras, das frases e dos próprios textos. É papel do tradutor observar e registrar esses movimentos de transição, a fim de construir o texto novo.

O ofício tradutório envolve contemplar ativamente os processos de mudança de conceitos e sentidos; de produção de novos conceitos; e de apagamento de significados gastos. Envolve também trabalho quase alquímico de reduzir e coagular. Redução do original a seus elementos sêmicos básicos, facilmente manobráveis, a fim de coagulá-los em novo texto semicristalizado.

Envolve, ainda, a compreensão de que qualquer texto está repleto de possibilidades dormentes à espera do leitor/tradutor que saiba ativá-las. O tradutor, em seu transe, sempre desconfia do texto, de seu autor e de suas supostas reais intenções.

Tudo ali será continuamente fluido. A tradução será uma manipulação possível do original, assim como o original terá sido uma manipulação de textos anteriores. Sob os dois, sob os muitos e inumeráveis, será possível tatear fios tensos e vivos que os percorrem e que lhes dão sentidos.

E no fim dos fios, achar o quê? Perceber o quê? Talvez apenas vislumbrar que acabam por devolver à terra a discreta porção de sentidos que lhes coube gerir, por algum tempo.

Tudo isso é parte do transe do tradutor. Traduzir como se a eternidade estivesse do seu lado e operasse a seu favor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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