Cântico ao coaching

Poemas de Nenhum mistério, novo livro de Paulo Henriques Britto, celebram a crueza do real
Paulo Henriques Britto, autor de “Nenhum mistério”
28/01/2019

Nenhum mistério, novo livro de poemas de Paulo Henriques Britto, aparece no momento em que a lista dos mais vendidos livros de ficção (de acordo com o que restou do suplemento literário do jornal O Globo) é liderada por Poesia que transforma, do cearense Bráulio Bessa, conhecido por recitar seus poemas num programa televisivo de enorme audiência. Publicado pela Sextante, editora especializada em comercializar títulos de viés motivacional, o livro de Bessa marca-se pela comunicação imediata e pela emanação de positividade. Daí a escrita em forma fixa, o frequente imperativo e a mensagem segundo a qual tudo é bom, e o que for não transformar-se-á em sim se houver crença e entusiasmo, conforme apregoado por Recomece, carro-chefe do volume.

Não se trata de tomar a obra de Bessa para diminuí-la, porque a vida também sopra no clichê, mas a comparação com a de Britto é útil. Importa verificar, a princípio, o que leva um autor do gênero lírico (desinteressante para a grande mídia e para o mercado) a ocupar um quadro semanal em programa de auditório e a protagonizar o comércio literário. Considerando o teor dos escritos e o carimbo editorial que os veicula, o sucesso de Bráulio Bessa se faz por ele dar ao grande público precisamente o que o grande público deseja e é programado a desejar, ou seja, a diretriz concluída para se chegar a uma felicidade modelada. Por ser um poeta recitador, o fenômeno ganha ares de genialidade, mas sem que se prescinda das festivas etiquetas do previsível — Poesia com rapadura é, afinal, o nome do quadro estrelado por um poeta nordestino.

Em segundo e principal lugar, importa ver como a escrita de Paulo Henriques Britto reverbera elementos desse tipo de convenção, pela qual o conteúdo instrui e a forma poética — generosamente simplificada para comunicar melhor — torna encantada a instrução. De postura comedida, de visual sóbrio e de falas atravessadas pelo pigarro, o autor de Paraísos artificiais (2004) é figura antimidiática por insolência. A imagem do homem comum tem relação com o viés coloquial de parte de sua escrita, nisso herdeira do Modernismo: “(…) e por um instante até me atrevo// a afrontar meu fio de razão/ e de ânsia de ainda ser feliz/ e ligo o foda-se e a escrevo” (Caderno, quinta parte). Embora constituído por itens da fala corriqueira, o traço poético de Britto também se afasta dela, donde o que nele soa simples não se confunde com simplismo comunicativo (até mesmo por sua frequente escrita em inglês).

Em seus sete livros poéticos, por exemplo, são escassos os pontos exclamativos (tão fartos na boca do povo), sendo doze no total e apenas um em Nenhum mistério. Nesses livros, a intravagância discursiva também se nota nas dedicatórias, progressivamente reduzidas em pessoas e palavras, até chegar à ausência no volume de agora. Já o livro de Bessa é oferecido ao leitor em octossílabos — “Dedico este livro a você,/ que ao sentir minha poesia/ se emociona, se transforma/ e faz de mim alguém que serve/ para alguma coisa boa”, trazendo, ao final, um agradecimento: “Agradeço a Deus, que me fez poeta!”.

Celebração do real
A síntese comparativa talvez desenhe Britto como poeta ensimesmado e refratário à vida de carne e de calor, mas o fato é que sua poesia se elabora a partir da atenta observação de tendências comportamentais e discursivas, para se efetivar como contraponto ao excesso e às artificialidades da retórica do aconselhamento, da agregação de valor e do sucesso: “A primeira tentativa/ quase sempre dá em nada./ A segunda é mais do mesmo./ A terceira, malograda,// faz a pessoa pensar,/ questionar metas e métodos,/ antes de embarcar na quarta,/ que dá num naufrágio épico.// A essa altura, desistir/ não é mais uma alternativa:/ o fracasso se tornou/ a própria textura da vida,// e a hipótese do acerto/ não entra sequer no cálculo./ Assistir à própria queda/ agora é todo o espetáculo”, diz a décima parte de Caderno. Estruturalmente irônica, esta poética assimila com intimidade temas e formas banais da gestão e da autoajuda e revela-se ao revés delas, exibindo a face do existir que recusam ou não conseguem alcançar.

Paulo Henriques Britto instaura uma imprevisível celebração do real, na medida em que o contempla no lado B dos projetos e das realizações, e não a partir de repetitivos roteiros. Assim, desmotivacionalmente, diz o emblemático Elogio do raso: “Recomeçar sem que haja/ arremedo de começo/ exige mais que coragem./ Há que ter um forte apreço// pela aparência mais chã/ e o desdém mais destemido/ pelas funduras malsãs/ onde se acoita o sentido.// Este apego à superfície/ — dizem — dá força à vontade/ (o que, apesar de tolice,/ pode até ser verdade)”.

No receituário geral, a autoajuda se aproxima de uma religiosidade simplificada que, em nome da leveza, apresenta-se isenta de dogmas convencionais, tendo no coaching o seu sacerdote — ou a sua entidade, a depender da ostentação de suas cifras. Pode haver aí um modo novo de contato com o concreto e com o místico; pode haver (mais) uma diluição típica da época, em que muitas coisas se ajuntam para se descaracterizarem essencialmente. Ainda que de fato nova, essa religiosidade perpetua o desejo de em tudo se enxergar uma razão lógica, sem margem à dúvida ou ao acidental, o que o livro de Paulo Henriques Britto questiona já em seu título e em poemas como Uma nova teoria de tudo:

Todas as coisas que existem no mundo
fazem sentido. Senão não teria
sentido elas serem. Ou estarem. Tudo
mais depende desse princípio. Os dias

 vêm antes das noites, não depois. Nunca
faz parte de sempre, assim como zero
é apenas um número entre outros números.
Toda forma é perfeita: não só a esfera,

que é só mais redonda que as outras — nada
de mais. E todas as proposições
são verdadeiras — se tornam verdade

no instante exato em que são formuladas.
Ficam sem efeito as contradições
todas. (Pronto. Creia. Não faça alarde.)

A citação de um soneto dá ocasião para ver na poesia de Paulo Henriques Britto resposta a outro tipo de tendência, formada por habituais operadores da contraconvenção. A poesia contemporânea mais disseminada na universidade e na imprensa desdobra as vanguardas e dedica-se à experimentação da linguagem para se distinguir da palavra geral e do que ainda permanece como noção do que deve ser poesia (“Poesia é o que não é poesia”, disse em entrevista Augusto de Campos, um vanguardista contemporâneo). Sobre a poesia contemporânea de vocação acentuadamente experimental, é frequente o comentário segundo o qual ela é feita de iniciados e para iniciados, por sua recusa à comunicação razoavelmente penetrável. Como aqui se lê o novo livro de Paulo Henriques Britto por contraste e como acima se transcreveu um soneto, poder-se-ia supor que a escrita em forma fixa é uma oposição ao presente pelo viés do passado, o que, caso se confirmasse, indicaria conservadorismo, algo incabível para designar o autor de Macau (2003). O poeta lança mão de recursos tradicionais para contemporaneamente movimentá-los, como, em Uma nova teoria de tudo, o emprego de rimas toantes e soantes e de ritmo heterogêneo, quando o normal da forma fixa é a uniformidade de sons e de acentos. A mais, a escrita de Britto é aberta à comunicação, mas não de modo simplista (o que se confirma pelo emprego frequente do cavalgamento), fator que contribui para explicar sua densidade, uma vez que ela escapa a diferentes ordens.

Sem mistério algum, portanto, mas com alta consciência e fundo talento, Paulo Henriques Britto inscreve-se como incontornável e admirável poeta deste tempo.

Nenhum mistério
Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
70 págs.
Paulo Henriques Britto
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1951. É poeta, ficcionista, ensaísta e tradutor. Nenhum mistério é seu sétimo livro de poesia e décimo primeiro em sua bibliografia total.
Marcos Pasche

É crítico literário.

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