Dos reconhecimentos possíveis

Inédito no Brasil, o romance "The recognitions", de William Gaddis, traz diversos personagens em situações hilariantemente absurdas
William Gaddis , autor de “The recognitions”
28/01/2019

— Mas você… você está trabalhando. Você é um artista?
— Sim, e vivi como um ladrão.

The recognitions[1] é o romance de estreia do nova-iorquino William Gaddis (1922-1998). Lançado em 1955, foi massacrado pela crítica (que, salvo por raras exceções, nem se deu ao trabalho de ler suas quase mil páginas) e ignorado pelo público. Duas décadas se passaram antes que Gaddis voltasse a publicar. Pelo não menos ambicioso JR, enfim obteve reconhecimento: o livro foi agraciado com o National Book Award e o interesse por seu trabalho cresceu. Nas décadas seguintes, escreveu mais três romances, tão desconcertantes quanto os predecessores: Carpenter’s gothic (1985), A frolic of his own (1994, outro National Book Award) e Agapé Agape (2002). No entanto, vinte anos após sua morte, e exceto por uma edição já esgotada de Carpenter’s gothic (Alguém parado lá fora, tradução de Muriel Alves Brazil, editora Best Seller), o autor segue inédito no Brasil. Talvez seja o momento de reparar essa falta enorme, pois a profundidade das perquirições de The recognitions só é comparável à do Thomas Pynchon de O arco-íris da gravidade e Gaddis é o chão de onde brotaram John Barth, William H. Gass, Don DeLillo, David Foster Wallace e Thomas Pynchon. (E, passando pelo berçário, não custa nada assinalar que até o pequeno Jonathan Franzen tentou beber dessa fonte — e, previsivelmente, engasgou-se.)

Como toda e qualquer obra de arte digna de ser considerada como tal, The recognitions diz respeito a uma busca. Desde o título — homônimo de um “romance teológico” do século 3 — até a maneira como introduz temas e personagens, passando pelas epígrafes que abrem cada um dos capítulos[2], Gaddis propõe uma odisseia em que a busca pela autodescoberta e por reconhecimento, seja de que espécie for, quase sempre resulta em um descolamento da realidade imediata e, não raro, do próprio eu.

A espinha dorsal da narrativa diz respeito ao pintor Wyatt Gwyon, cujo pai é um presbítero da Nova Inglaterra que abraçou o mitraísmo depois de perder a mulher — primeiro movimento de irreconhecimento que irrompe do livro. Após sofrer um contratempo, Wyatt deixa-se aliciar pelo mefistofélico Recktall Brown e passa a forjar telas “perdidas” de mestres como Bosch e Van Eyck, integrando uma rede criminosa que inclui o crítico de arte Basil Valentine, responsável por autenticar as pinturas depois que são “encontradas”.

Das ironias: o contratempo citado acima é fruto da honestidade de Wyatt, que se recusa a fazer um “acerto” com um crítico (que elogiaria seu trabalho em troca de uma porcentagem sobre as vendas); e seu insucesso como pintor também se deve à concepção anacrônica que possui do fazer artístico, incorporando técnicas e crenças renascentistas segundo as quais o que ele faz é algo deiformemente guiado e observado. Traduzo um trecho:

(…) Porque eles viam Deus em toda parte. Não havia nada que Deus não observasse, nada, e então isso… e então cada detalhe da pintura reflete… a preocupação de Deus com os objetos mais insignificantes da vida, com todas as coisas, pois Deus não descansa por um instante sequer, e nem o pintor poderia descansar. Você vê a perspectiva nisso? — ele perguntou, segurando a réplica amarrotada diante deles. — Não tem nenhuma.

Hilário e absurdo
Dezenas de outros personagens pipocam nas páginas, não raro em longos capítulos crivados de diálogos — marca registrada do autor, que em romances posteriores radicalizaria tal expediente. São aspirantes a poetas, aspirantes a dramaturgos, aspirantes a romancistas, aspirantes à paternidade, viciados, falsificadores, editores, todos (se) debatendo com todos, falando sem parar em festas, parques, bares, restaurantes e zoológicos.

Em uma dessas festas, na véspera de Natal, as maluquices atingem níveis hilariantemente absurdos: uma criança bate à porta a todo instante e pede pílulas para a mãe, obtendo-as sem problemas; um gato é acidentalmente morto por uma convidada, que trata de ocultar o cadáver em sua bolsa, furtada mais tarde; um bebê passeia por ali e é afinal sequestrado por uma infeliz, que depois será abandonada pelo marido (ele se assume homossexual); alguém se tranca no banheiro e tenta se matar; um crítico é exposto diante de todos como um rematado punheteiro, e depois, sozinho com a dona do apartamento, faz jus à fama; a música de Handel ressoa sem parar ao fundo etc.

E todos os personagens alimentam os irreconhecimentos que percorrem a narrativa: Esther, mulher de Wyatt, vê no marido algo que ele poderia ou deveria ser (um reverendo como Gwyon) e da qual se distanciou (ou irreconheceu) para pintar; Otto, sempre em fuga, escreve uma peça que poucos leem, mas pela qual todos acusam-no de plágio; Esmé, poeta, modelo, suicida, viciada, espelha de maneira corrompida a imagem da mãe de Wyatt (e escreve numa carta para ele, antes de ir para casa e tentar se matar: “Pinturas são metáforas da realidade, mas, em vez de auxiliar na sua realização, elas obscurecem a realidade, que é muito mais profunda. A única maneira de eludir a pintura é pela morte absoluta.”); Stanley, um músico católico, está sempre às voltas com uma composição em homenagem à mãe diabética e moribunda (depois suicida), cuja execução só se dará no epílogo; Sinisterra, responsável por matar a mãe de Wyatt (quando, numa viagem marítima, ela é acometida por uma apendicite e ele finge ser médico), tropeça no rapaz décadas mais tarde, junto ao túmulo (vazio) dela, para rebatizá-lo conforme seus pais um dia quiseram chamá-lo.

Esse encontro com Sinisterra talvez seja o primeiro sinal de que o protagonista, após tanto errar pelo mundo, é empurrado rumo a algum (auto?)reconhecimento. De fato, em relação a Wyatt, três passagens me parecem cruciais para compreender como o romance é animado por sua busca repleta de frustrações, busca que, ao final, não obstante toda a ambiguidade da cena e a aparente loucura do personagem, encontra um desfecho apaziguador.

Na primeira dessas passagens, há uma sequência perturbadora de irreconhecimentos. Fora de si, planejando expor o esquema de falsificações, Wyatt retorna brevemente à casa do pai. Este pensa que o filho voltou para se tornar um sacerdote mitraísta; o avô materno confunde-o com ninguém menos que o mítico Preste João; a empregada acha que ele é o próprio Cristo redivivo; e, como se não bastasse, o próprio Wyatt julga ser o reformista Jan Huss (queimado numa fogueira no século 15).

Mais irreconhecimentos: no trecho citado acima, em que se dá o encontro de Wyatt com Sinisterra, eles se associam momentaneamente numa jogada que, para variar, envolve uma falsificação.

Por fim, no último capítulo antes do epílogo, reencontramos Wyatt em um monastério (o mesmo no qual seu pai se refugiara décadas antes, após perder a mulher), não mais falsificando, mas restaurando pinturas de forma nada ortodoxa. Não se trata de uma redenção, mas, em dois longos diálogos entre ele e o “distinto romancista” Ludy, é possível, sim, ver como o protagonista enfim alcança algum reconhecimento de si, antes de se despedir acenando com a possibilidade de uma epifania. Wyatt está “vivendo através da culpa” — e o termo “através” me parece essencial, na medida em que alude a uma travessia que se confunde com suas idas e vindas pelo mundo e diz respeito à vida orgânica, mortal, ali contraposta à perenidade das obras de arte que restaura.

O procedimento de Gaddis, em que forma e conteúdo (e, reitero, personagens) se espelham mútua e incessantemente, autoenclausurados, cria uma tensão gigantesca. Esta, muito embora seja aliviada aqui e ali por passagens cômicas e absurdas, remete à maneira como se concebe — no sentido mesmo de gerar — a própria obra de arte. Dizendo de outro modo, é como se o romance, ao problematizar as noções de originalidade e autoria, ao aparentemente reconhecer que tais noções estejam inexoravelmente corrompidas no âmbito da contemporaneidade, terminasse — enquanto produto acabado, enquanto obra de arte irrepreensível — por reavivá-las.

Cada negação, distanciamento ou irreconhecimento é aparente, pontual e superficial, ao passo que o que se realiza é o romance em si e também nós, leitores, quando o lemos, reconhecendo-o (enquanto obra de arte que se/nos espelha), reconhecendo o outro (seja o autor, sejam os personagens, sejam os outros leitores) e reconhecendo a nós mesmos ao fazê-lo, na medida em que podemos, ou melhor, porque conseguimos e ainda nos é permitido fazê-lo.

No meu entender, The recognitions trata, afinal, da possibilidade desse reconhecimento maior, mais profundo e irrestrito, intrínseco à nossa relação com a obra de arte e com o outro. Tal possibilidade é presentificada pelo próprio livro, assim disposto à nossa frente em toda a sua beleza.

[1] Dispus da edição lançada pela Dalkey Archive Press em 2012, com prefácio de William H. Gass, facilmente encontrável por aí.

[2] Sobretudo a primeira dessas epígrafes, atribuída a Santo Irineu: Nihil cavum neque sine signo apud Deum, “Em Deus nada é vazio de sentido” — lembre-se dela quando chegar ao final do penúltimo capítulo.

William Gaddis (1922-1998)
Estreou em 1955 com o romance The recognitions. Apesar de suas quase mil páginas, a obra passou despercebida pelo público e crítica. Autor de outros quatro romances, Gaddis venceu o National Book Award duas vezes e pavimentou o caminho para autores como Thomas Pynchon e David Foster Wallace.
André de Leones

Nasceu em Goiânia (GO), em 1980. É autor dos romances Eufrates (José Olympio, 2018), Abaixo do Paraíso (Rocco, 2016) e Terra de casas vazias (Rocco, 2013), entre outros. Página pessoal: andredeleones.com.br.

Rascunho