A liberdade na ribalta

Quatro peças de Henrik Ibsen salientam sua defesa do livre pensamento e das mulheres
Henrik Ibsen , autor de “Espectros”
24/12/2018

A tocante defesa da liberdade de pensamento desenvolvida nas peças de Ibsen é muitas vezes soterrada por traduções ruins. Já num português fluente e corrente, sobe à superfície a clareza do enredo, ainda que rocambolesco, mas encravado de questões éticas e existenciais que falavam com leitores e espectadores do século 19 e soam muito atuais. A leitura só melhora com escolhas que se tornam ousadas em alguns momentos, como faz o tradutor Leonardo Pinto Silva na Caixa Henrik Ibsen, composta por Espectros (1881), Um inimigo do povo (1882), Hedda Gabler (1890) e Solness, o construtor (1892).

Ainda que representem só uma pequena parte da prolífica obra de 25 peças do autor, os quatro livros seduzem os que não estão acostumados à leitura de dramaturgia. Inspirada nos programas de espetáculos, a arte lança jato de tinta colorida na capa e inclui trechos em letras enormes, simulando falas sob um foco de luz no palco. O norueguês não deve ser das línguas mais fáceis para se encontrar um bom tradutor ao português, portanto é uma pena que não esteja nos planos da editora lançar novos títulos do autor com o mesmo cuidado.

Extirpada a escrita tediosa que Ibsen ganhou em português muitas vezes, sobe ao palco a técnica que o autor dominou aos poucos, até chegar a ser o mais famoso dramaturgo europeu nas décadas de 1880 e 1890 — a ponto de G. Bernard Shaw cunhar o termo “ibsenismo”. Ibsen entrou para a história do teatro como “pai do drama moderno” por ter sido um dos primeiros a esgarçar o realismo, inserindo em suas frestas o incômodo de fim de século. Abriu caminho para que outros aprofundassem essa transformação, como pontua Stella Adler em Chékhov, Strindberg, Ibsen (2002).

Durante os quatro anos que passei pesquisando Ibsen e Robert Wilson e a intersecção dos dois artistas na montagem de A dama do mar, me deparei com todo tipo de tradução do autor norueguês. Aquelas excelentes para o inglês, como de Rolf Fjelde, e outras menos fluentes. A novidade de Leonardo Pinto Silva nos aproxima fiordes de distância do âmago dessas peças, ainda que algumas questões morais que incomodaram burgueses da época não ressoem hoje. Os direitos jurídicos da mulher num casamento, ou a falta deles, o iminente perigo de ser vista na calçada com um homem que não é seu marido, por exemplo.

Se a tradução faz fluir a fala de Ibsen, Pinto Silva nos surpreende com expressões pouco usuais, que enriquecem o texto — “Não se apoquente” é uma delas. “Enquanto se estiver impregnado no corpo desta coisa chã”, proclama o doutor Stockmann em defesa de seus ideais. “Mas também, conclui Hedda Gabler, “quem faz fama deita na cama”. Adoro.

Ibsen escrevia em crítica consistente e incansável à sociedade. Se talvez hoje soe como “mais do mesmo” é porque inspirou gente como Oscar Wilde e G. Bernard Shaw a um sarcasmo bem menos contido. O sucesso veio antes de sua Casa de bonecas (1879), mas foi com ela que viu as portas dos teatros se abrirem sem reservas — apesar de algumas atrizes terem exigido um novo final em que Nora não abandonasse marido e filhos. O talento para atrair o escárnio contra si mesmo estava posto, e em Espectros (1881) ele choca ainda mais ao tocar no tema da sífilis e sua hereditariedade, defender o amor livre, sugerir um abuso e até o incesto, ainda que não consumado. Todas elas questões “menores” para o autor diante do que realmente o incomodava: o casamento por conveniência. Helene Alving encarnava, portanto, uma resposta às críticas, como se ele dissesse: “Vou mostrar o que teria sido de Nora se ficasse ao lado do marido”.

Feminista malgré lui, Ibsen faz com que todas as suas personagens mulheres encenem o incômodo lugar da mulher burguesa, a ponto de Aimar Labaki o inserir, no Posfácio desta Caixa, como precursor de Simone de Beauvoir e Doris Lessing. Para Adorno (1903-1969), suas contemporâneas eram netas de Nora, mas lhes faltava o mesmo espírito.

E seu legado vai além. Com Espectros, os personagens de Ibsen deixam todo maniqueísmo. O Pastor Manders é bom ou mau? Em nenhum momento temos indícios de um desvio de conduta, e, no entanto, ele parece fazer mal a todos. A ambiguidade continua: não sabemos se o determinismo sugerido na peça era modismo do autor ou uma crítica a ele. “Que terrível! Senhora Alving, esse fogo é um castigo pelos pecados desta casa!”, conclui o pastor.

Em Um inimigo do povo (1882) Ibsen está em toda sua ferocidade, e arma seu doutor Stockmann com uma metralhadora panfletária. Responsável pelos doentes de uma estância balneária, ele suspeita da qualidade da água supostamente benfazeja e envia uma amostra para análise. Ibsen, sempre curioso quanto às transformações do seu tempo e ao que seria de nós no futuro, fala em misteriosos microrganismos. Só Stockmann acredita neles, assim como sua família. Ao receber a comprovação de que a água está mesmo infectada, começa sua via-crúcis, tentando convencer o irmão, diretor do balneário, a imprensa, a opinião pública. Fracassa em todas as tentativas, e Ibsen nos mostra os interesses por trás de cada segmento da sociedade.

A peça trazia uma resposta do autor à execração sofrida com Espectros. Como linguagem, é o auge de seu período realista, em que revela muita habilidade nas entradas da ação e seu desenvolvimento, em incansáveis diálogos e as polpudas frases de Stockmann. Apesar das comparações entre protagonista e autor, o primeiro é muito mais obstinado, numa crítica sutil aos dogmas. Afinal, a peça tem fim aberto e não sabemos o que será da família: a revolta compensará? Enquanto isso, sua mulher Katrine Stockmann fica a seu lado com um comentário protofeminista: “Pois então deixe-me mostrá-los [sic] como esta comadre velha aqui pode agir como um homem”.

A peça era admirada por Nelson Rodrigues, que citava sua famosa última linha: “O homem mais forte do mundo é também o que mais está sozinho”. Também é essa a fonte da famigerada “unanimidade burra”. “O mais perigoso inimigo da verdade e da liberdade entre nós é a tal maioria coesa. (…) A maioria nunca tem a razão ao seu lado. Jamais, estou dizendo! Essa é uma daquelas mentiras sociais contra as quais um livre pensador deve se rebelar.”

O tédio da modernidade
Considerada por Tereza Menezes, autora de Ibsen e o novo sujeito da modernidade (2006) como a heroína mais bem acabada por Ibsen, Hedda Gabler grita com qualquer um e anuncia em desespero: “Não faz ideia do tédio que me espreita neste lugar!”. A mulher burguesa de sua época ficou sem as tarefas da casa nem lugar no mundo do trabalho. Nesse limbo, qual o papel de uma pessoa inteligente, mas sem coragem de infringir as regras sociais? A questão também é trabalhada em A dama do mar e outras peças do autor.

Vemos aqui como Ibsen insere elementos trágicos e outros recursos da “peça bem-feita”, mas inovando em seu realismo estranho. Há uma trama, e como! Ela envolve ameaças, dois suicídios, uma fuga de casa, um manuscrito lançado à lareira. E mesmo assim há o tédio e os acontecimentos que se dão mais no interior dos personagens do que fora. Hedda é transparente em seu descontrole, uma arma carregada mas sem saber onde mirar.

Sensação semelhante acomete Solness, o construtor, muito comparado ao próprio Ibsen, assim como outros personagens homens do autor. Em idade para se aposentar, ele resiste em passar o bastão a seu aprendiz, incapaz de elogiar um bom trabalho. Seduz uma jovem e depois é seduzido por outra, mas essa o leva à morte. O drama secreto do passado está aqui como nunca: aquele pecado de que ninguém fala mas que levará o protagonista a procurar sua própria expiação e tragédia.

Espectros | Um inimigo do povo | Hedda Gabler | Solness, o construtor
Henrik Ibsen
Trad.: Leonardo Pinto Silva
Carambaia
456 págs.
Henrik Ibsen
(1828-1906) insistiu na carreira de autor de textos de teatro apesar dos constantes fracassos e críticas, tanto em seu país natal, na Noruega, como na Itália e na Alemanha, países onde viveu por 27 anos em autoexílio antes de retornar à pátria. Os sucessos, porém, foram suficientes para mantê-lo um inovador até o fim, armado de convicções mutantes, porém ardentes. A liberdade do indivíduo, o livre pensamento, a recusa às amarras morais foram bandeiras que inseriu aos poucos, sempre em meio a enredos que satisfaziam o realismo da época, mas com acenos a outras correntes, como o simbolismo e até o surrealismo. Com Casa de bonecas, chocou ao fazer Nora deixar os filhos para trás. Em Espectros, debateu o efeito do passado sobre o presente, tema que nunca mais abandonaria. A peça foi encenada em 1890 mais de 200 vezes pelo Théâtre Libre de Antoine, chegando a vir ao Brasil em 1903. Em fins do século 19 tornou-se o dramaturgo mais incensado da Europa. Toda sua obra oferece uma dramaturgia muito fácil de ler, repleta de rubricas que situam os personagens em lares burgueses, mas em que a ação ocorre sobretudo em sua interioridade.
Helena Carnieri

É mãe da Catarina e do Ivan. Nasceu em Curitiba (PR), em 1978. Estudou jornalismo e Estudos Literários (UFPR), além de relações internacionais e economia. Publica reportagens especiais nos jornais Valor Econômico, Folha de S. Paulo e portal UOL, e crônicas em A vida é palco.

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