Morte sem luta

"Estrada perdida", de Telmo Vergara, é exercício de perfeita composição, no qual o ser humano se oferece à morte por razões fúteis
Telmo Vergara, autor de “Na plateia”
27/11/2018

Entre as décadas de 1930 e 1960, o porto-alegrense Telmo Vergara produziu ampla e elogiada contística, hoje esquecida, bem como o romance Estrada perdida, abandonado à primeira e única edição, de 1939, até 2017, quando o Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul desfez a injustiça e reeditou a obra. Os que desejarem entender alguns dos motivos dessa desmemória — crime cometido, aliás, contra outros ótimos autores nacionais, como João Francisco Lisboa, Joaquim Felício dos Santos, Júlia Lopes de Almeida, Emanuel Guimarães, Coelho Neto e Carlos de Laet — devem conferir a tese de doutorado escrita por Fábio Augusto Steyer, em junho de 2006, para o Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que concede a Vergara seu devido lugar em nosso cânone.

Dividido em quatro seções, que correspondem a períodos de tempo —Alguns dias de 1918, Um dia de 1919, Um dia de 1920 e Alguns dias de 1938 —, Estrada perdida ilude, de forma positiva, o leitor, pois só alguns personagens, dos apresentados na primeira parte, resistirão à passagem do tempo, que não perdoará nem mesmo a protagonista, Lígia, centro da vida infantil repleta de brincadeiras e aventuras que ela divide com o irmão, Roberto, e o primo, Luís. Sempre pronta a conceder certo tom dramático às cenas de que participa, Lígia é a personagem que se emociona com coisas simples, como a luta entre duas pandorgas no céu, demonstra intensidade e energia em gestos triviais — “As mãos se afirmam espalmadas na terra, enquanto os lábios, o rosto, quase a cabeça, mergulham na água fresca, que é bebida aos sorvos vorazes, desce veloz pela garganta afogueada” —, e pode conceder um quê de sensualidade contida ao carinho que guarda por Luís:

 Lígia puxa Luís pelo braço, encosta-o ao seu corpo, faz as duas cabeças se roçarem, misturarem os cabelos:

— Oia ali!
Luís não compreende:
— Ali onde?
Lígia encosta o indicador no vidro, apontando:
— Ali perto do mato…
Luís não enxerga:
— Sim. Tô vendo o mato. Que qui tem?
Lígia sussurra, bem junto ao ouvido de Luís:
— Não diz nada pro Roberto, viu?
Luís promete, impaciente:
— Sim, que qui tem?
Lígia prossegue, o hálito morno bafejando o rosto de Luís:
— Tu sabe o que qui eu tô vendo ali no mato?
Gargalhada escandalosa:
— Nada, bobo! Nada!

Apesar da gargalhada e da revelação do logro — Lígia não quer afastar a cabeça da de Luís, quer deixar os cabelos fartos e negros continuarem misturados aos de Luís, como o calor bom do seu rosto requeimado passando, suave, para o rosto frio de Luís. Mas a timidez súbita toma conta de Luís, fazendo-o afastar-se brusco.

Essa personagem falante, atrevida, impulsionada pela curiosidade às vezes mórbida, cresce gradualmente na narrativa, mostra-se mais esperta e ágil que o irmão e o primo, e também dona de inigualável empatia por todas as formas de sofrimento, como no Capítulo 12, na visita que fazem ao casebre em que vivem as famílias de Peleu e Marciano, empregados do avô: “A pena, a piedade vem súbita ao peito de Lígia, que começa a sentir o mal-estar crescente, o mal-estar que lhe acelera o coração, que lhe empalidece o rosto trigueiro, que lhe faz fugir, trêmula, na ponta dos pés” — sentimento que mais tarde elucidará para Roberto e Luís:

Lígia para de bolir na água. Espera que o rosto se refaça, espera que os grandes olhos negros se desenhem nítidos. Diz, sempre olhando a água do arroio:

— Vocêis não conta pro vovô, sinão o vovô é capaiz de despachá ele… (A nuvem de pesar escurece o rosto bonito) Eu vi a filhinha deles, no quarto da Isaltina… Tá tão magrinha! Eu disse pra Isaltina que lá em casa aparece criancinha mais magra… Mas é mentira. Nunca vi uma guriazinha tão magra… (Os olhos pesarosos fitam, vagos, o irmão e o primo) Si o vovô despacha o Marciano, aí mesmo é que a negrinha morre…

Numa decisão insólita, que obedece à intensidade e à irreverência de Lígia, essa “boneca inatingível” instiga a morte — e perde o desafio.

A primeira parte do romance está repleta de outros personagens, figuras comoventes, que serão devoradas pelo surto de gripe espanhola. Veja-se, por exemplo, o idoso primo Rodrigues, médico, consciente de que o fim se aproxima, chamando a todos de “cagarolas”, com sua cativante antipatia, forma irônica e apaixonada de enfrentar a vida, contraponto perfeito a Nunes, comerciante que se esconde sob fofocas e outras mesquinharias, a quem Rodrigues enfrenta com delicioso sardonismo:

A bengala desfere a pancada fortíssima na madeira do balcão:

— Sim! Você está gozando, sim! Mas fique sabendo de uma coisa: você tem um enorme amor a esta vidinha, você tem um grande cagaço de morrer… E fique sabendo também que a Espanhola lhe levará, ora se levará! Com este seu jeitinho magro, com esses seus pulsinhos caquéticos, você embarcará, na certa! E embarcará se borrando todo, que nem o ajudante de ordens do Conde d’Eu, um cagarola que eu curei do fígado com colomelano, compreendeu? Você embarcará, não tenha dúvida! (Outra pancada de bengala) Aliás, embarcaremos! Mas com esta diferença, você se borrando e eu… e eu… (gargalhada) me borrando também…

Dr. Rodrigues sobraça a caixa de papelão, já embrulhada, ajeita melhor o chapéu de feltro negro, faz a bengala dar a última pancada na superfície do balcão:

— Fique sabendo que, quanto a mim, estou brincando. Eu não me borrarei quando a cadela vier, porque, graças a Deus, tenho coragem, mas você, seu Nunes, não tenha dúvida, você se borrará todo! Aproveite um desses seus suspensórios para segurar as calças… Os de cinco mil réis…

Crianças e adultos irrompem das páginas com dúvidas, preocupações, alegrias, ressentimentos, movidos não por um deus ex machina, mas pela vida mesma, pronta a se alimentar dos nossos anseios. Tais personagens se inter-relacionam graças à habilidade do autor, compondo o painel sensível de uma Porto Alegre antiga, atemorizada pelas notícias da Primeira Guerra — qualidade que se revela também nos diálogos ágeis, nos delicados flagrantes do cotidiano, nas cenas dramáticas ou de cunho introspectivo, como esta antológica manifestação do medo:

A chaveta se torceu com o estalido seco. A treva chupou a luz do quarto, como uma esponja que aspirasse todo o conteúdo de um aquário. A esponja chupou também a respiração, a vida de Luís, que ficou junto à porta, ainda com a mão sentindo o frio da louça da chaveta, rijo como uma estátua.

No silêncio do quarto, Luís escutou as batidas apressadas do coração, que parece ser o único resto de vida que a esponja não aspirou.

Sempre rijo, sempre de respiração suspensa, Luís se dirige para a cama, que é um vulto vago e escuro, colado ao canto do quarto.

Duro, de movimentos quase tolhidos, Luís deita e se cobre até o pescoço. Faz força, morde os lábios, a fim de evitar que a respiração chegue forte e traga ao silêncio do quarto outros ruídos que não sejam o tuc-tuc apressado do próprio coração, outros ruídos que bem podem trazer o hálito acelerado de fantasmas malvados.

Os olhos, abertos e fitos na treva — notam o vago, o tímido fio de claridade, que entra pela fresta da única janela do quarto. O fio, o fiozinho impreciso de luz azulada, invade, vagaroso, tímido, o país da treva. Quebra-se, como a fotografia de um corisco, desliza reto, bate à meia altura da parede, rente à cama de Luís. Irradia-se, ramifica-se, vago, revela a cômoda alta e pesada. Aqui, na parede fronteira do quarto, junto à porta, o riozinho de luz azulada desaparece, entra na treva.

Na segunda metade do livro, reencontramos o frágil Luís, agora adulto medíocre, transformado num protagonista preso às piores ilusões, esquecido dos ensinamentos do avô, dr. Ferreira. Como diz a velha prima Sinhá, “falta-lhe coragem”. A psicologia do personagem é perfeita: os erros da idade adulta já se manifestavam na infância. A decadência de Luís se amplia quando o comparamos à vida íntegra do negro Peleu, paupérrimo, mas altivo, sincero. Luís tem consciência da sua derrocada — e se entrega cada vez mais a ela: ultraja a memória familiar; torna concreta a “estrada perdida”, expressão com que o avô definia a existência; apequena-se por motivos vis.

Exercício de perfeita composição, cujas boas cenas excedem o limite desta análise, Telmo Vergara compõe não apenas o quadro da Porto Alegre que se transforma no decorrer da primeira metade do século 20, mas apresenta, como disse José Lins do Rego, “as pequenas dores da vida que corre sem o estrépito das quedas d’água”. Trata-se, contudo, de olhar aflitivo e pessimista, no qual o ser humano se oferece à morte por razões fúteis, irresponsáveis — como Lígia — ou escolhe a morte moral, a decadência sem o mínimo gesto de luta, aceitando, pusilânime, a dissolução da própria vontade.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Guilhermino César e Sul.

Telmo Vergara
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1909, e faleceu na mesma cidade, em 1967. Bacharelou-se em Direito em 1931, atuou como advogado e foi funcionário público no Departamento das Municipalidades, além de auditor do Conselho Administrativo do Estado, do Conselho Superior de Polícia e auditor-chefe do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul. Deixou as coletâneas de contos Na plateia (1930), Seu Paulo convalesce (1934), Cadeiras na calçada (1936), 9 histórias tranquilas (1938), Histórias do Irmão Sol (1940), Vigília de Quarentão (1956) e Contos da vida breve (1966); o romance A Lua nos espera sempre… (1946); as novelas O moço que via demais (1931) e Figueira velha (1935); e o livro de memórias Nascimento de um avô (1967, inacabado/título provisório).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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