Irrelevância da crítica literária

A crítica literária praticada hoje é um cavalo disfarçado de unicórnio. Ela não interessa a quase ninguém, porque é uma atividade muito, muito parcial, cheia de lacunas, que finge ser completa
Ilustração: Teo Adorno
27/11/2018

A crítica literária praticada hoje é um cavalo disfarçado de unicórnio. Ela não interessa a quase ninguém, porque é uma atividade muito, muito parcial, cheia de lacunas, que finge ser completa. É uma atividade bastante subjetiva que finge rigorosa objetividade, até na esfera acadêmica.
Dos sete bilhões e meio de habitantes da Terra, quem ainda costuma ler crítica literária:
— Muitos escritores, pra aprender alguma teoria, outros porque buscam legitimação, anseiam ser criticados (positivamente, é claro).
— Os próprios críticos literários: os cínicos, por ambição profissional (grana), e os menos cínicos, por vaidade ou por ainda acreditarem na relevância da corporação.
— Poucos editores, porque precisam vender desesperadamente seus autores.
— Poucos professores e estudantes de literatura.
— Poucos jornalistas literários.
— Poucos leitores apenas leitores.
A verdadeira crítica literária (o magnífico unicórnio) tornou-se uma atividade impraticável, hoje, devido ao volume absurdo de literatura circulando no planeta. Nenhum ser humano é capaz de reunir todos os atributos que permitiriam pensar um consistente sistema literário. Ou até mesmo escrever uma resenha ou um artigo sem lacunas, completos.
Exemplo:
Digamos que um crítico decida avaliar a nova edição de um clássico da poesia brasileira. Pra poder criticar essa nova edição, ele precisaria conhecer todas as edições anteriores. Seria preciso cotejar a nova edição com todas as outras, pra decidir qual delas é realmente a melhor. Também seria preciso conhecer a fundo a história da poesia brasileira e mundial, pra decidir se a obra do poeta em questão ainda merece ser reeditada.
Mais tarde, se o mesmo crítico decidisse avaliar a nova edição de um clássico da poesia portuguesa, o método teria de ser o mesmo: seria preciso cotejar a nova edição com todas as outras, pra decidir qual delas é realmente a melhor. Também seria preciso conhecer a fundo a história da poesia portuguesa e mundial, pra decidir se a obra do poeta em questão ainda merece ser reeditada.
Outro exemplo:
Digamos que o crítico decida avaliar o romance de um jovem escritor chinês, que acaba de ser lançado no Brasil. Pra poder criticar esse livro, não bastaria ler apenas a edição brasileira. Seria preciso cotejar a edição brasileira com a chinesa, pra avaliar a tradução. Seria preciso conhecer bem a literatura chinesa. Seria preciso conhecer também a literatura mundial, pra poder comparar a realização do jovem romancista chinês com a realização dos outros romancistas do planeta, de todas as épocas.
Mais tarde, se o mesmo crítico decidisse criticar o romance de um jovem escritor russo ou indiano, que acabam de ser lançados no Brasil, o método teria de ser o mesmo: seria preciso consultar o texto original e o contexto original, pra criticar a tradução brasileira. Seria preciso conhecer bem a literatura russa ou indiana. Seria preciso conhecer também a literatura mundial, pra poder comparar a realização do jovem romancista chinês ou indiano com a realização dos outros romancistas do planeta, de todas as épocas.
Mas não há ser humano no mundo capaz de dominar tantos idiomas e tantos contextos históricos e teóricos, capaz de cruzar tanta informação relevante numa resenha ou num artigo valorativo.
O problema é que os críticos literários, quando escrevem, fingem manusear uma soma de informações que eles não possuem. Usam a seu favor certos recursos de retórica pra parecem mais preparados do que são. Os melhores até apresentam uma ótima capacidade intuitiva e reflexiva, mas seu banco de dados é raso, sempre será.
Hoje só a crônica literária é possível: um texto mais leve e saboroso, que assume a inevitável parcialidade e não finge uma rigorosa objetividade. Um prosaico alazão ou, na melhor das hipóteses, um puro-sangue campeão, que não fingem ser um impossível unicórnio.
Vivemos o momento dos cronistas, não dos cientistas literários.
A atividade crítica pede uma capacidade de processamento e um banco de dados tão poderosos, que o próximo crítico literário DE FATO, quando aparecer — se aparecer —, não será uma pessoa, será uma inteligência artificial. Uma mente eletrônica capaz de dominar dezenas de idiomas, comparar obras originais e contextos originais e, no final, apresentar uma avaliação estética realmente embasada, de qualquer obra já escrita.
Resta saber se os humanos estarão interessados na invencível crítica literária realizada por uma inteligência eletrônica. Tudo indica que apenas outras inteligências eletrônicas irão prestigiar seus pares.

[Do catecismo do capeta]
Pergunte o nome de dez críticos do século 19 e eu me lembrarei de três. Não, de dois. Talvez de um. Pergunte o nome de dez escritores do século 19 e eu me lembrarei de vinte. Não, de trinta. Talvez de quarenta. Críticos são parecidos com absorvente íntimo e fralda geriátrica. Necessários, mas descartáveis.

Escritores passam a vida produzindo provas contra a mediocridade da morte. Obras literárias são terríveis testemunhas de acusação. Mas a morte desdenha, retrucando que as obras literárias são, na verdade, uma forte evidência da imortal mediocridade dos próprios escritores.

“Li o que você escreveu sobre meu livro. Sei onde você mora e estou armado, se prepare.” O pior é isso: todo escritor sabe o endereço do inferno.

Já notaram que não existe o Nobel de Caráter? Ou o Pulitzer de Caráter? Ou o Oscar de Melhor Caráter? Nem mesmo um Jabuti de Caráter do Ano? Eles sabem que o BOM-CARÁTER é só o patife que consegue esconder melhor seus vícios, e por mais tempo.

Hoje até o escritor maldito é um funcionário da editora, com plano de carreira, benefícios, amigo secreto na confraternização anual e retrato emoldurado de funcionário do mês.

Literatura brasileira contemporânea: dez por cento de livros excelentes, vinte por cento de livros bons mas enfadonhos, trinta por cento de livros medíocres, quarenta por cento de livros ruins em todos os sentidos. E cem por cento de escritores vaidosos. Os poucos vaidosos talentosos a gente até aguenta, mas o tsunami de medíocres vaidosos, putaquipariu!

É preciso ficar atento à verdadeira intenção por trás de cada frase dos escritores, nas obras literárias e principalmente fora delas, no cotidiano. Existem as frases efetivamente potentes (com valor estético) e as frases pragmáticas (pra pagar as contas). De modo geral, nas entrevistas, nos debates, nas mesas redondas e nas redes sociais os escritores oferecem numerosas e constrangedoras frases-pra-pagar-as-contas. Sempre que ameaçado pelos boletos, até o escritor mais talentoso vira um cínico cíclico. Um político em campanha.

A bajulação é o critério de desempate na literatura brasileira. Se dois livros forem muito bons, na disputa por espaço e prêmios vencerá o autor mais competente também na arte da bajulação.

A universidade, igual a qualquer instituição mantida pelo capitalismo estatal ou particular, é só mais um local de competição e servidão. Não existe liberdade na universidade, muito menos liberdade criativa. Constrangidos pelo manual de normas técnicas da ABNT, os professores-pesquisadores acadêmicos que também fazem literatura são escritores medianos, ou menos que medianos. O fantasma positivista assombra até mesmo sua produção criativa. Prova disso é que a competição e a servidão acadêmicas nunca geraram um único grande talento da literatura.

(E tem gente que ainda não entende por que a impopularidade do capeta só faz crescer no ocidente e no oriente, no purgatório e no paraíso.)

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho