Amostra de vitimismo

"Poço dos Paus", de Fran Martins, não passa de uma redação infantil, às vezes hesitante, com um discurso indireto livre superficial
Fran Martins, autor de Poço dos Paus.
29/10/2018

Fran Martins, conhecido por suas obras jurídicas — o Curso de direito comercial, de 1957, é reeditado até hoje —, tornou-se advogado por imposição econômica: sem condições para manter-se em Pernambuco, onde pretendia cursar medicina, retornou ao Ceará, sua terra natal, ingressando na Faculdade de Direito.

Em Fortaleza, participa, após o 1º Congresso de Poesia do Ceará, realizado em 1942, do Grupo Clã, responsável pela revista homônima, cujos projetos se consolidam no I Congresso Cearense de Escritores, de 1946, durante o qual Fran Martins defende tese cara a inúmeros modernistas — e a vários autores que, ainda hoje, pretendem ocupar protagonismo artístico ou político, sem abdicar, é claro, de alguma sinecura —, segundo a qual o escritor deve deixar de ser “uma figura decorativa” na vida do país. Fran Martins vê o autor como um “trabalhador intelectual” semelhante a “todos os trabalhadores conscientes”, devendo se esforçar para construir “um mundo melhor e mais feliz”. Em pleno pós-guerra, o discurso algo ingênuo, comum entre pacifistas de todos os matizes, também convocava os escritores à participação política, criticando os partidos e a “prepotência dos governantes” — ideias que, no conjunto, são formas diluídas da literatura que acredita no engajamento político, modelo de submissão ideológica defendido por muitos.

A obra de Fran Martins, contudo, antecede esses fatos. Já em 1934 lançara Manipueira, uma coletânea de contos, seguida dos romances Ponta de rua (1937) e Poço dos Paus, publicado em 1938.

Falsa bondade
Poço dos Paus nasce, segundo a nota do autor que abre o volume, de uma identificação: como os personagens Climério e Luciano, afirma Martins, “eu também desejo ser bom”. O leitor, assim, prepara-se para a investigação de algum modo ética — na qual a bondade será, talvez, insistentemente buscada —, não sem antes decepcionar-se com outra observação do autor: “(…) Muitos notarão a ausência de intensidade e movimento”.

De fato, o romance principia num tom não somente monótono, mas repetitivo: os dois parágrafos iniciais espelham-se, ainda que com variações, construídos por meio de frases telegráficas, como se o autor, inseguro, buscasse a própria voz. Aqui, apenas o primeiro parágrafo:

O governo estava dando passagens para Poço dos Paus. Queriam construir um dos maiores açudes do mundo. Corria mais dinheiro que em tempo de inverno bom. Famílias inteiras abandonavam o sertão, os trens saíam atopetados de gente. Todos partiam satisfeitos, sorridentes, alegres. Iam ganhar dinheiro como em tempo de inverno bom. Muitos não acreditavam. Iam mas não acreditavam que fosse o que se dizia. Tinham medo de deixar a terrinha, os roçados, as criações. E passavam dias pensando, antes de tomar a resolução. Valeria a pena tentar? Não seria embromação tanta vantagem junta? A miragem os atraía, por isso resolviam experimentar. E quando chegavam nos trens ouviam casos assombrosos. Mais dinheiro que em tempo de inverno bom. Cassaco ganhando nove mil reis por dia. Apontadores de quatrocentos, até quinhentos mil reis por mês. Uma verdadeira mina. E se tomavam de entusiasmo, alegravam-se, criavam coragem. Tinham esperança de vencer, vontade de vencer. Venceriam. Uma coisa dizia que venceriam. Coração não mente, ouviam seus corações e sabiam que venceriam.

Essa redação infantil, às vezes hesitante, que elabora um discurso indireto livre superficial, incapaz de penetrar nas camadas obscuras da vontade, dos anseios dos personagens, será reencontrada até as últimas páginas do livro:

E o trem chegou e partiu, levando o servente de volta aos seus pagos. Árvores, paisagens, rios, tudo o que ficava para trás não o interessava. O trem corria, as árvores corriam, tudo corria na vida, só o servente Climério parado. No carro viajantes falavam, vozes diferentes confundiam-se com a zoada da locomotiva. Aquele povo que ali estava era dono de si, era feliz. Só o servente Climério como um fugitivo, encolhendo-se a um canto, covarde, vencido, regressando aos pagos, voltando à terra de onde arribara à procura de dinheiro e felicidade.

Da mesma forma, as repetições não só atormentam o leitor, mas reduzem a psicologia dos personagens a pensamentos recorrentes e previsíveis. Veja-se, por exemplo, o final do segundo capítulo, Viagem. Nas páginas antecedentes, a personalidade do protagonista, Climério, fora desenvolvida nas suas linhas mestras: garçom num cassino do Crato, partilha do sonho de enriquecer, ao qual se contrapõem sucessivas humilhações que sofre no emprego — “vida de cachorro, de vencido” — e na vida pessoal, desprezado pela prostituta Florinda, fêmea inalcançável. Depois de colocá-lo, de forma abrupta, no trem para Poço dos Paus, o autor fecha o capítulo com parágrafos que seguem roteiro tosco: Climério resolveu abandonar o Crato (o que já fora anunciado desde as primeiras linhas do capítulo); rios de dinheiro correm no açude (o que não é nenhuma novidade para quem recorda a primeira página do romance); os valores dos salários não saem da mente de Climério (do que também somos informados reiteradas vezes); o protagonista está no trem e vai partir (assim esperamos, ansiosamente, há várias páginas); Climério abandonou tudo para começar vida nova (o autor talvez não saiba o que dizer enquanto o trem demora a partir); tudo o que Climério possui é o “grande amor que Florinda teimava por menosprezar” (nenhuma novidade para o leitor minimamente atento).

No capítulo Reação, na metade do romance, a prisão de um conhecido de Climério, Cassiano, revolta o protagonista — e o narrador diz: “O sangue subiu à cabeça do servente do Crato”. A frase será utilizada mais três vezes em poucos parágrafos, numa tentativa frustrada de comprovar a mudança de ânimo do ex-garçom.

Redizer e redizer liquefaz a própria estrutura da narrativa: histórias pessoais são repetidas a intervalos, comprovando a imperícia do autor — ou, pior, um perturbante método de escrita, que prefere julgar os leitores como prováveis desmemoriados.

Desprovido de diálogos consistentes — é impossível que as falas se prolonguem, pois os personagens não possuem vida interior, expressando-se por meio de exclamações ou, de forma maçante, repisando o que o narrador já relatou —, o romance avança com o objetivo de provar uma única tese: todos têm “mistérios”, um sinônimo, neste caso, para “tragédias”; mas não se deve “andar alardeando os sofrimentos”, o melhor é calar-se, pois “estava escrito que seria assim, ninguém pode resolver as dores íntimas, os mistérios da vida de quem é pobre”.

Para o autor, há, portanto, uma só lei a reger nossa vida: a fatalidade. Perceba-se, contudo, que não estamos diante de personagens movidos pela aceitação valorosa do próprio destino, ou seja, por um comportamento estoico. Incluindo o protagonista, todos permanecem distantes de qualquer tipo de heroísmo, mas sempre predispostos à resignação, àquela submissão fatalista, para a qual o destino está predeterminado e as consequências ocorrerão inevitavelmente, como se fossem marcadas por uma necessidade absoluta.

Nessa coleção de homens destituídos de amor fati, comandados pelas variações do clima, pelos acontecimentos e pela vontade de outrem, a única que apresenta alguma vida interior é Rosalinda: consciente de sua incapacidade para mudar de vida, afasta-se do comportamento autômato que a circunda e desobedece a seus instintos, mostrando-se capaz, por exemplo, de defender Climério mesmo quando ele a despreza para ficar com Florinda.

Rosalinda pode, assim, agir com bondade; liberta-se, portanto, da ideia apresentada pelo autor, para quem “Climério queria ser bom”, mas, exatamente como seus amigos, é “absorvido pela vida”, preso a uma existência em que o destino força-o a “baixar o fogo” e “recolher-se ao lugar dos humildes” e à “insignificância dos pequeninos”, marcado pela “estrela que trouxera ao nascer”. Ideia de bondade extremamente confusa, pois é impossível ser bom ou mau sem livre-arbítrio. A bondade — assim como a maldade — é um ato, determinação da vontade para fazer o bem, decisão que Climério nunca alcança, pois apenas se submete aos acontecimentos, às variações de humor dos superiores, à seca e às chuvas, ao desejo das mulheres. Seguindo o mesmo raciocínio, depreende-se também que, para Fran Martins, os pobres estão impedidos de serem bons — o que equivale a tremenda falácia.

Cumpre-se, dessa forma, o que o escritor anunciara em sua nota: “(…) Na realidade, somente personagens vergadas ao peso do destino encontrareis nas páginas que ides ler”. Ora, se não existe vontade, se a consciência do protagonista se resume à reiteração de queixas e se o único ato possível para Climério é a obediência automática, então não apenas a bondade é impossível, mas o próprio romance, que se transforma num mero folheto, insignificante amostra de vitimismo.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Telmo Vergara e Estrada perdida. 

Fran Martins
Nasceu em Iguatu (CE), em junho de 1913, e faleceu em Fortaleza (CE), junho de 1996. Bacharelado em direito em 1937, foi professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Jornalista, exerceu funções de redator nos jornais A Esquerda, Pátria Nova, A Nação, A Rua e O Estado, além de colaborar em vários outros periódicos. Deixou, dentre outras obras, os romances Mundo perdido (1940), Estrela do pastor (1942), Mar Oceano (1948), O cruzeiro tem cinco estrelas (1950) e A rua e o mundo (1962).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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