Cada uma de nós

Vocês, leitores do Rascunho, já conhecem o trabalho de Regina Dalcastagné, que desde 2005 investiga o perfil médio do escritor brasileiro
Ilustração: Isadora Machado.
29/10/2018

As coisas precisam avançar. Aqui em Fortaleza, fico sabendo da pesquisa de atrizes como Elisa Porto, Maria Vitória e Paula Yemanjá, que ressaltam o valor das mulheres em muitas estéticas e profissões. Inclusive no âmbito político e militar, nossas ancestrais atuaram fortemente — e o orgulho de conhecer os detalhes se equipara ao desgosto de perceber o quanto demorou (e ainda demora) para que esse anonimato acabe, e as mulheres deixem de ser empurradas ao segundo plano da História.

Vocês, leitores do Rascunho, já conhecem o trabalho de Regina Dalcastagné, que desde 2005 investiga o perfil médio do escritor brasileiro — e a estatística mostra que os autores na maioria são brancos (93,9%) e homens (72,7%). Pois essa tendência pode ser observada em diversas outras linguagens, se suspeitarmos que a arte promove, inevitavelmente, os privilégios de seu tempo.

Se tomarmos, por exemplo, o Teste de Bechdel, que indica o machismo em narrativas, encontraremos resultados preocupantes. A proposta foi inspirada por Alison Bechdel, que em 1985 produziu uma história em quadrinhos na qual uma personagem feminina sem nome diz que só assiste a um filme se ele satisfizer os seguintes requisitos: 1) Deve ter pelo menos duas mulheres. 2) Elas conversam uma com a outra. 3) Sobre alguma coisa que não seja um homem.

Uma reflexão atenta mostra que grande parte dos filmes, livros ou espetáculos teatrais — principalmente (por que será?) os de tendência cômica — não passa no teste. As mulheres são apresentadas de forma estereotipada e sem profundidade, como se os seus interesses se restringissem à vida amorosa ou familiar. E, caso se procurasse filtrar ainda mais (dentro da perspectiva do Teste de Bechdel) os temas sobre os quais as mulheres conversam em obras de ficção, o desastre seria completo: quantos exemplos sobrariam, se as personagens femininas devessem discutir sobre assuntos que não envolvem filhos, gestão doméstica ou preocupações com a aparência? Quantas obras trazem protagonistas interessadas em mercado de trabalho, política, esporte, filosofia, ciência, urbanismo?

O lugar das mulheres na arte, enquanto criadoras ou personagens, continua marginalizado: elas são vistas como figuras menores, de pouca profundidade, com mínima possibilidade de expansão. Continuam empurradas para a última fila, quando não são de fato ignoradas, engolidas pelo silêncio. Recordemos que há mais de 40 anos o artigo Visual Pleasure and Narrative Cinema, de Laura Mulvey, foi publicado, criticando a representação convencional das mulheres — mas a maioria dos filmes prossegue com os mesmos vícios. Vícios propositais, conforme Angela McRobbie, que em artigo sobre pós-feminismo e cultura popular expõe como as conquistas sociais dos anos 1970 e 80 foram enfraquecidas a partir da perniciosa ilusão de que a igualdade está alcançada.

Felizmente, vêm surgindo muitas iniciativas para superar esse mecanismo de violência e desprezo (duas faces da moeda). O movimento Nós Propomos, por exemplo, aparece aqui no Brasil como uma extensão do projeto que nasceu na Argentina (Nosotras Proponemos). Os seus compromissos com práticas feministas no campo cultural, literário e intelectual estão disponíveis no site http://nosotrasproponemos.org.

Segundo Paula Parisot, o movimento começou “no dia 5 de novembro de 2015, quando a artista Graciela Sacco faleceu. Nesta ocasião várias artistas argentinas em suas páginas de Facebook recordaram não só a potência da obra de Graciela Sacco, mas também ‘as formas sutis — e nem tanto — com que o machismo na cena artística de Buenos Aires havia atuado, de distinto modo, contra ela, como artista e como pessoa’, como explica Andrea Giunta no seu livro Feminismo y Arte Latinoamericano – Historias de artistas que emanciparon el cuerpo (siglo XXI, 2018)”.

Uma das propostas do grupo, por uma garantia legal de aborto seguro, demonstra — pela polêmica que produz — o quanto algumas pessoas não admitem que a mulher seja sequer dona de seu próprio corpo. Recentemente, Débora Diniz, professora e pesquisadora da UnB, chegou a sofrer ameaças e intimidações por um grupo de direita. Sua fala do início de agosto sobre a descriminalização do aborto, em audiência no STF, é recomendável para toda a humanidade. Igualmente essencial é o documentário Primavera das mulheres, de 2017, produzido pela roteirista Antonia Pellegrino e pela diretora Isabel Nascimento Silva. Os muitos feminismos são necessários para garantir, pela presença plural, a igualdade de gênero.

Paralelamente a essas iniciativas que apontam para o futuro, as tendências de resgate do passado se multiplicam. O Coletivo Elsa von Freytag-Loringhoven busca provar como essa artista de vanguarda foi a verdadeira autora do famoso urinol que tanto revolucionou a arte — mas acabou roubada por Marcel Duchamp.

Nas mídias virtuais, uma série de postagens levanta outros nomes de mulheres na ciência que tiveram os seus trabalhos silenciados ou tomados por homens. No esporte, na política, em diversas áreas explodem situações similares — e em vários países a discussão sobre os papéis sociais do feminino e do masculino cresce. Num projeto de postagens no Facebook, a escritora Carola Saavedra vem levantando a importância de várias figuras: María Luisa Bombal, Ingeborg Bachmann, Leonora Carrington, Unica Zürn, Kati Horna, Remedios Varo, Elfriede Jelinek, Ana Mendieta, Sóror Juana Inés de la Cruz, Graciela Iturbide, Paula Modersohn-Becker e Hilma af Klint. A recente exposição Radical Women, na Pinacoteca de São Paulo, também reforça a qualidade da presença feminina na arte. As coisas estão, portanto, avançando.

Mas não é o suficiente. Basta olhar as estatísticas (de feminicídio e violência doméstica: sempre alta; de presença de mulheres em postura equitativa à dos homens, no espaço profissional: muito baixa). Ou basta que qualquer pessoa se indague se ainda hoje caem sobre ela interdições ou exigências motivadas simplesmente pelo fato de ela ser mulher. Esse termômetro é um bom indicador de desmascaramento. E revela, a longo prazo, verdades assombrosas sobre a educação que recebemos — inclusive de nossas mães e avós. Elas nos ensinaram a repudiar mulheres, tratá-las como rivais, concorrentes. Como se continuássemos a depender financeiramente de um homem, o tal “provedor do lar” que iria garantir nossa vida, e a dos descendentes. Em torno desse varão, o mundo girava. As outras mulheres eram ameaças.

É preciso agora um trabalho vigoroso na direção contrária. Se cada mulher olhar a outra com a delicadeza de uma identificação cúmplice ou com uma predisposição amigável, tudo já começa a melhorar. Se cada uma de nós se voltar para a amiga, irmã, vizinha, colega, aluna — com uma iniciativa de cuidado e afeto, com amizade protetora —, a transformação acontece. Como diz Antonia Pellegrino numa entrevista, “o processo de se tornar feminista é o de se refazer internamente”. Demolir crenças e medos, culpas e ódios: tudo isso é bem mais urgente do que se pensa.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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