Enigma e evidência

A relação corrompida entre pai e filho emerge como tema recorrente em "Ninguém detém a noite"
Nivaldo Tenório, autor de “Ninguém detém a noite”
27/09/2018

Há algo de podre, não somente no reino da Dinamarca, mas também por trás das relações familiares nas histórias de Ninguém detém a noite, de Nivaldo Tenório; algo tão sombrio e inenarrável que só pode ser revelado no sussurro das entrelinhas, no não dito e nos assim chamados cliffhangers, os finais abertos, que o autor domina com precisão cirúrgica. São doze narrativas curtas que, apesar de seus enredos singulares, têm em comum apresentarem-se como desdobramentos de uma única obsessão temática: o mal — enquanto enigma e evidência.

O dicionário Priberam Online de Língua Portuguesa me oferece, entre outros, os seguintes sinônimos para o termo “mal”: infelicidade, desgraça, calamidade, dano, prejuízo, inconveniente, imperfeição, ofensa, aflição, lesão, o que desabona. Quase como se tomasse esta lista como base para cartografar as diversas regiões da noite que se abate sobre seus personagens, o autor nos conta, ou melhor, sugere histórias de traições, ciúmes, incesto, pedofilia e até filicídio. Digo “sugere” porque nada aqui é contado abertamente — e é este o maior mérito do escritor garanhuense —, tudo é somente insinuado e cabe ao leitor atento a paciência e a meticulosidade de revelar os negativos dessa narrativa em câmara escura.

No primeiro conto, As escamas do monstro, narrado por meio de uma linguagem quase hermética, um funcionário de banco passa sua vida em revista aos (sobre)saltos, partindo do momento em que termina a carreira e leva de volta para casa os seus pertences do escritório numa caixa. O foco aqui está nos altos e baixos da vida em família e nos conflitos em torno da paternidade, tendo a doença, os vícios e a morte a calcar os passos do texto como uma sombra.

Já em Banquete, assim como em A ilha dos cães, o inenarrável em si se faz tema da narração. O que não pode ser dito porque é inaudito: os tabus. Abuso, infidelidade e incesto ficam suspensos nos ecos da história de uma família que vive isolada num lugar fantasmagórico e remoto. Há muitas referências bíblicas e a questão da religião com sua tirania ideológica emerge como subtema, assim como a fuga através da literatura, presente na forma de uma grande biblioteca. Os livros e a fé nos saberes como única válvula de escape no isolamento da grande casa ruinosa que é a infância.

A relação corrompida entre pais e filhos, ou mais precisamente, entre pai e filho, emerge como tema recorrente em vários contos. Em Moby Dick, este conflito paternal é contado em retrospectiva, anos mais tarde, e a impotência diante dos fracassos afetivos é intensificada pela sombra da velhice, que se impõe como declínio físico e mental.

Redução da densidade óssea e da massa muscular. Redução das atividades hormonais. Redução da resistência imunológica sistêmica. Tudo isso é envelhecer.

O protagonista tenta fugir da deterioração por meio de uma ligação amorosa com uma mulher muito mais jovem e se vê obcecado pela ideia do rejuvenescimento. Começa a correr (do tempo?) e leva o treino a um tal extremo — sem atentar para os sinais do próprio corpo — que acaba tendo um infarto. Aqui, como nos mitos gregos, a fuga do destino leva ao encontro deste.

Nada aqui é contado abertamente, tudo é somente insinuado e cabe ao leitor atento a paciência e a meticulosidade de revelar os negativos dessa narrativa em câmara escura.

Já em Os sócios de papai e Internato a figura do pai é, a um tempo, signo de concorrência e abandono. Os dois contos são narrados da perspectiva do filho que, dividido entre a proximidade simbiótica com a mãe e a sensação de insuficiência em relação às exigências do pai, parece não conseguir definir seu papel no quadro familiar. O mote do filho “torto”, ou seja, que não faz jus às expectativas, reflete também a ambiguidade da relação amorosa (e por vezes libidinosa e abusiva) com a figura materna, enquanto o pai permanece intangível ou mesmo rechaçado, deixando o filho capturado em seu complexo de Édipo.

Em O caso da tartaruga, a paternidade está distante, tanto no sentido real como no figurado:

Meu filho me ligou. Faz tempo que a gente não se fala. Não me disse muito. Não havia muito o que dizer.

Mas este é sobretudo um conto vigoroso sobre o fim do amor, sobre as corrosões nas relações interpessoais, que se provam irrevogáveis, pois só são percebidas quando consumadas. As paixões acabam como a tartaruga morre, aparentemente sem razão (e olha que “pode viver até cem anos”, nos diz o protagonista), e quando nos damos conta, é tarde demais e só nos resta dar baixa e inventariar as perdas.

O rumor das ondas invisíveis chegava até mim. Pensei na tartaruga morta. A esta hora foi cortada, fatiada por mãos que vasculham razões de sua morte, como se isso importasse, e fosse possível, uma vez desvendado o mistério, restaurar tudo, pôr as tripas no lugar, a carne de novo intacta recuperaria suas funções e de novo voltaria para o mar. Acima do casco as ondas rugindo.

A impossibilidade do amor sincero e incondicional fica evidente em O coração impuro. Logo de início, um personagem nos alerta de que “todo sangue é impuro”, como se quisesse nos prevenir de que as tocaias sentimentais estão sempre onde menos as esperamos. Então, ouvimos a história de um homem disposto a doar medula óssea ao filho acidentado, para então descobrir que não era o verdadeiro pai e tinha construído amor sobre uma mentira. Um assassinato é insinuado.

É somente perto do final do livro, em Giullia, que há uma espécie de reconciliação com a figura do pai. Neste conto, ele está demente e passa a viver num passado longínquo e na saudade de uma vida que não teve. Os encontros com o filho se apresentam como uma âncora na memória cada vez mais falha, como se todo apaziguamento só fosse possível no esquecimento.

Por fim, no último conto, que dá nome ao livro, o tema do mal emerge com força tanto maior quanto mais recalcada. Temos aqui um militar austero completamente à mercê dos seus instintos incontroláveis, escravo de uma libido pervertida que encontra satisfação apenas no que condena e lhe causa sofrimento. O protagonista só vislumbra escapatória no suicídio, a morte se impõe como única maneira de “parar o coração obstinado”.

Cada um, diz o Livro, é tentado pelo próprio mau desejo e, se arrastado e seduzido, paga-se com o soldo da morte. E que grande novidade! Cedo ou tarde é o salário que cabe a todos. O destino invencível.

O antropólogo Ernest Becker afirma em seu premiado livro, A negação da morte, que “de todas as inquietações que movem o ser humano, a mais forte e determinante é o medo da morte”. Esse temor também seria a mola mestra de quase todas suas atividades, assim como a sua principal fonte de angústia e de grande parte dos seus problemas.

O livro de Nivaldo Tenório lança uma luz a um tempo difusa e incisiva sobre a questão das raízes do mal. (Não é de se admirar que tenha sido elogiado por Raimundo Carrero, um dos nossos maiores mestres em decalcar as sombras da mente humana.)

Com caligrafia muito própria e enigmática, o autor mostra que domina os vieses do seu ofício. No entanto, o estilo aberto de sua escrita, que prima pela sugestão e pelo não dito, pode assombrar leitores despreparados, sobretudo aqueles que esperam de um livro de contos boas histórias com começo, meio e fim. Aqui, o leitor é convocado não só a interpretar, mas a fazer parte ativa na tessitura do texto, fechando lacunas e ouvindo com cuidado o murmúrio que continua para além do ponto final. Ou, nas palavras do próprio autor: “Esse livro precisa de um leitor paciente, que amarre as pontas. Eu acredito muito nesse tipo de texto, como se o narrador não soubesse inteiramente dos detalhes da trama”.

Ninguém detém a noite
Nivaldo Tenório
Confraria do Vento
112 págs.
Nivaldo Tenório
Nasceu em Garanhuns (PE), em 1970. É autor de Dias de febre na cabeça (Confraria do Vento, 2014) e um dos editores do fanzine de literatura u-Carbureto.
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho