Sobre vermes e livros

Ao tradutor cabe tentar recuperar o que foi roído, sendo necessário preencher as lacunas do papel caprichosamente perfurado
Machado de Assis, autor de “Dom Casmurro”
29/09/2018

Ali no breve capítulo XVII de Dom Casmurro, lemos que o narrador empreende pesquisa em velhos livros sobre pessoas e coisas que ferem e curam, como o Senhor e a lança de Aquiles. Bentinho queria elaborar uma dissertação sobre a matéria.

Acabara de refletir sobre “o sabor póstumo das glórias interinas”. Ele, que tanto remoía o passado, não deixaria de regozijar-se nesse exercício. Traço logo um paralelo que me interessa: o sabor póstumo é, sem dúvida, a tradução; as glórias interinas são as do original.

Mas voltemos ao que diz o Casmurro: “Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los […] para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita”. Verdadeiro mergulho em bibliotecas esquecidas, em memórias empoeiradas — hábito de tradutores e leitores contumazes.

Lemos que o narrador se esforça para “catar o texto e o sentido”. E chega mesmo a catar os próprios vermes dos velhos livros, “para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles”. Nada arranca dos vermes, claro, mas lhe resta um travo de desconfiança: “Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído”; e de abafar o ruído dessa dupla destruição, da qual não restariam vestígios. Ou, quem sabe, fosse sagaz estratégia para apagar a culpa do esquecimento.

Os vermes machadianos remetem ao natural desfazimento do papel e do próprio texto — em movimento ao mesmo tempo físico e linguístico-cultural que lentamente transforma a escritura e a maneira de lê-la. Eis aqui um processo que acomete todo e qualquer texto em papel, por mais força literária que contenha. Doença inata à escritura.

Vermes que roem, corroem, retalham o texto, destruindo e deglutindo significados, para depois — e aqui serei otimista — regurgitá-los transformados. Personagens que — mais ou menos concretos, mais ou menos virtuais — impõem renovados desafios ao tradutor.

O diálogo que se trava entre o narrador e um dos pequenos parasitas — “um longo verme gordo” — é ilustrativo do processo errático que afeta e modifica o texto. Bentinho pergunta o que havia no texto que haviam roído. A resposta: “não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos”.

Bentinho ainda questionou outros vermes, na esperança de ouvir algo diferente, mais próximo da verdade que imaginava. Nada conseguiu: “Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena”.

Os vermes são tão cegos quanto o mesmo processo que lentamente distorce a escritura. Não há direção precisa; não há ardor nem ódio; não há intencionalidade distinguível; não há lógica nem propósito: “nós roemos”. E isso é tudo.

Ao tradutor cabe tentar recuperar o que foi roído. Do ponto de vista físico, arqueológico, é necessário preencher as lacunas do papel caprichosamente perfurado. Do ponto de vista textual, literário, importa reconstruir significados que se foram esfacelando com o passar do tempo. Nos dois casos, é preciso ir remendando a escritura, aqui e ali. Só assim para novamente lê-la e entendê-la, remodelando a massa espessa e amorfa bolçada pelos vermes. Benditos vermes.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho