A advertência de Arkadi

"O adolescente", de Dostoievski, é um grande romance para os leitores que gostam de enfrentar desafios
Ilustração: Igor Oliver
30/08/2018

Leio O adolescente, o menos conhecido dos grandes romances de Fiódor Dostoievski, na tradução de Paulo Bezerra para a Editora 34. Publicado no ano de 1875, o livro recebeu, na época, muitas críticas negativas. Consideraram-no um romance fracassado. Até hoje, em geral, ele não é compreendido; na verdade, é esquecido e, embora admirado a distância, até desprezado também. É, de fato, um romance que, com sua estrutura quebrada e instável, seu despedaçamento às vezes perturbador, destoa um pouco do espírito geral que rege a obra do escritor russo. Mas, ou por isso mesmo, é um grande romance, imperdível, sobretudo para os leitores que gostam de enfrentar desafios.

Relata a juventude e a formação de Arkadi Makárovitch Dolgorúki, um rapaz de 19 anos, filho ilegítimo de um proprietário de terras, Viersílov; e, sem dúvida, um dos grandes personagens de Dostoievski. E trata, em particular, do nascimento daquela que o rapaz considera sua “grande ideia”: a de se tornar um milionário, à moda de um Rotschild, e assim escapar dos rigores da vida. Não irei falar, aqui, de O adolescente, um romance longo e complexo demais para tão pouco espaço. Detenho-me, porém, na primeira parte do primeiro capítulo do livro, um bloco compacto de 24 linhas, em que Arkadi adverte seu leitor, de antemão, a respeito dos riscos da aventura intelectual a que se propõe. A advertência é uma bofetada na face aturdida do leitor.

“Sem conseguir me conter, dei início à história dos meus primeiros passos pela vida, ainda que até pudesse deixar de fazê-lo”, ele anuncia na primeira página. Arkadi nos apresenta, então, uma forte reflexão sobre os riscos inerentes ao projeto de “falar de si” — tão popular na era das selfies, dos talk shows, de blogs e Facebook. Trata-se de um caminho rico, mas também de alto risco. Um caminho, na verdade, explosivo. Estamos sempre a nos enganar, a trapacear, a nos iludir. Quem pode, com segurança, dizer sua verdade? Basta começar a fazê-lo e já estamos mentindo. Nesse sentido, somos todos ficcionistas. É verdade que Arkadi é um personagem imaginário, um grande personagem literário; mas sua aflição, no contexto da ficção, é absolutamente real. Daí a importância de meditar sobre o que ele nos diz; advertências, por certo, em que o próprio Dostoievski expõe seus conflitos e agonias.

“É preciso nutrir por si mesmo uma paixão excessivamente desprezível para escrever a seu próprio respeito”, Arkadi prossegue. O adolescente é o diário de uma formação. Mas por que julgar que essa experiência pessoal interessará aos outros? Por que acreditar que ela deva ser transformada em letra? Usa Arkadi o argumento da penúria íntima: “Se me deu na veneta escrever palavra por palavra tudo o que me aconteceu desde o ano passado, isso foi motivado por uma necessidade interior: era grande minha estupefação com tudo o que havia acontecido”. O susto e a dor justificam, para o rapaz, sua escrita.

Mas será que, ao escrever, ele não se dá conta de que transforma a experiência em outra coisa? Será que não percebe que, ao lembrar, ele também imagina e inventa? Protege-se: recusa-se a usar o que chama de “floreios literários”; tenta escrever a verdade, somente a verdade — como nas narrativas policiais clássicas. Mas será que a verdade pessoal pode ser escrita? Será que existe uma língua, ou uma linguagem, que a esgote? Em busca desse caminho do real, Arkadi afasta de si todas as intenções literárias. É Dostoievski, o autor, quem chama sua história de “romance”, mas ele, o miserável Arkadi, seu narrador, não faz isso. Desse desencontro entre o desejo do autor e o desejo do narrador surge, desde logo, um abismo através do qual a verdade despenca e se despedaça. A verdade treme.

“Não sou um literato, literato não quero ser, e acharia uma indecência e uma torpeza arrastar para o mercado literário o íntimo de minha alma e uma bonita descrição dos meus sentimentos”, o rapaz prossegue. Algo lhe diz (a consciência lhe diz), porém, que, mesmo decidido a escrever a verdade, ele, a contragosto e para seu próprio horror, chegará à literatura. É sempre assim que a literatura se impõe: por subtração. Há alguma coisa que se retira da verdade, mal ela começa a ser dita, que verdade não é. O próprio Arkadi, apesar de suas advertências, pressagia o fracasso. Agastado, pressente que não cumprirá seu projeto. Que será traído por seu próprio desejo e por suas próprias intenções. Que acabará por fazer o que não deseja fazer, “tão perversivo é o efeito que tem sobre o homem qualquer atividade literária, ainda que ele a realize unicamente para si”.

A ideia da perversão — isto é, de um suposto desvio inevitável de um caminho natural — se impõe, mas ainda assim ele insiste em seus propósitos e segue em frente. Sabe Arkadi que mesmo a advertência que faz a seus leitores nessa primeira página é completamente inútil: de nada adianta ele dizer que não quer inventar se a escrita é sempre, mesmo na confissão mais bem intencionada, pura reinvenção. Tudo se passa à revelia do autor, por mais que o autor lute para ser fiel a si mesmo. A ficção é isso: um desdobramento, um alagamento, uma expansão incontrolável da verdade, que a deforma e a potencializa. Como a energização que, através de batidas repetidas, os farmacêuticos realizam nos medicamentos homeopáticos.

Por fim, Arkadi desiste de sua própria advertência. “Não obstante, eis aqui o prefácio: não haverá mais nada desse gênero. Mãos à obra: se bem que não há nada mais complicado do que empreender alguma coisa, talvez, até, qualquer coisa”. A ficção derrotou o homem — até porque o próprio homem, Arkadi, nesse caso, já é um personagem de ficção. A imaginação venceu a verdade. Agora as palavras podem se dilatar e alongar seu domínio sobre o mundo. Talvez os cosmonautas, em suas naves espaciais, e justamente porque a veem de muito longe, não tenham notado o principal: que nosso pequeno planeta é, mais do que de água, feito de letras. Se não letras — pensemos nos tempos remotos —, de murmúrios, vagidos, resmungos, gritos de desespero. Sempre do desejo de expressar o que não se expressa, sempre ele a nos empurrar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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