Jorge “Repetidor” Amado

No romance "Capitães da areia", a reiteração se torna um esquema de maçante previsibilidade
Jorge Amado, autor de “Capitães da areia”
31/07/2018

A biografia de Jorge Amado é indissociável do comunismo, ideologia política da qual foi fidelíssimo seguidor, tendo recebido, em 1951, o Prêmio Stalin, outorgado a figuras públicas que de alguma forma lutaram pela implantação do ideário esquerdista — ou, na linguagem de propaganda da antiga União Soviética, “em defesa do fortalecimento da paz entre os povos”. Desde 1932 integrado à Juventude Comunista, Amado ascendeu, em 1935, ao comitê dirigente desse setor do partido, quando atua na covarde Intentona, o que lhe garantiu seguidas prisões. Prolífico escritor, o primeiro período de sua carreira literária é impressionante: seis romances entre 1931 e 1937 — febre não só ficcional, mas principalmente política.

Antiestilo
Em 1937, chega às livrarias Capitães da areia, história de uma gangue de meninos de rua que aterroriza Salvador. A fim de contextualizar o drama dos componentes da quadrilha, Amado elabora reportagens e cartas, publicadas em periódicos soteropolitanos, mostrando o debate que divide a sociedade: pessoas pobres e caridosas defendem os criminosos; representantes da polícia e do Poder Judiciário só desejam oprimir e torturar. Introduzido na trama, o leitor conhece o armazém que os delinquentes habitam.

Enquanto surgem os personagens, alguns de psicologia bem delineada, como o contraditório Sem-Pernas, sobressai a certeza de que o narrador defende os criminosos, pois descreve-os segundo a fórmula que se repetirá ao longo do romance: “Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarros, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas”. Em vão o leitor busca provas desse amor e dessa poesia, mas o narrador insiste que a própria gargalhada dos Capitães, emitida após cada crime bem-sucedido, soa como “um hino do povo da Bahia”. Essas idealizações vêm sempre acompanhadas de sentimentalismo: todos se amam ou se consideram irmãos, unidos pela falta de carinho e de conforto. A tais fórmulas fáceis, o narrador acrescenta o mais batido dos esquemas sociológicos, segundo o qual a pobreza justifica o crime: “Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha de ser (grifo nosso) uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas”.

A sociologia rasteira polui, é claro, a psicologia dos personagens: no capítulo Filha de Bexiguento, por exemplo, Dora, órfã de mãe e pai, obrigada a pedir ajuda a uma antiga freguesa de sua mãe, é cobiçada pelo filho desta: “O vento levantou um pouco o vestido dela. Ele teve pensamentos canalhas ao ver o pedaço de coxa. Já se sonhava na cama, Dora trazendo o café pela manhã, a safadeza que se seguiria”. Duas páginas à frente, acolhida por membros dos Capitães da Areia, o narrador enche-se de complacência pelos heróis tão puros: “Mas não olhavam nem os seios, nem as coxas. Olhavam o cabelo loiro batido pela luz das lâmpadas elétricas”.

Além desses problemas, a indigência estilística predomina, pois o autor é obcecado por repetições. Ao descrever o personagem Gato, ele diz: “Uma noite (…) andava pelas ruas das mulheres, o cabelo muito lustroso de brilhantina barata, uma gravata enrolada no pescoço, assoviando como se fosse um daqueles malandros da cidade”. Na página seguinte, parece ter se esquecido dessas linhas e insiste: “Tinha o dom da elegância malandra, que está mais no jeito de andar, de colocar o chapéu e dar uma laço despreocupado na gravata que na roupa propriamente”. Poucos parágrafos depois, certo de que o leitor não tem memória, afirma, mais uma vez, que o personagem colocara “brilhantina no cabelo e ia marchando com aquele passo gingado que caracteriza os malandros”.

No capítulo As luzes do carrossel, o problema alcança nível paroxístico. Em vinte páginas, as luzes do carrossel torturam o leitor: “Como as crianças, os grandes cangaceiros (…) acharam belo o carrossel, acharam que mirar suas luzes rodando (…) era a maior felicidade”; eles “gozam daquela felicidade” que é “montar e rodar num cavalo de madeira de um carrossel, onde havia música de pianola e onde as luzes eram de todas as cores: azuis, verdes, amarelas, roxas e vermelhas (…)”. Os Capitães também podem ver “de perto rodarem as luzes de todas as cores”. O narrador insiste nas “luzes do carrossel” que giram “loucamente”, assegurando-nos que “penduradas estavam as lâmpadas azuis, verdes, amarelas, roxas , vermelhas”. Passam-se algumas horas e lá “estão as luzes do carrossel que rodam”, um poeta “faz um poema sobre as luzes do carrossel”, as crianças montam nos cavalos de madeira, “as luzes girando, todas as cores fazendo uma cor única e estranha”, namorados trocam beijos quando “o motor falha e as luzes se apagam” — e Sem-Pernas “só vê as luzes que giram com ele”. Páginas à frente, o narrador lamenta que “à tarde as luzes do carrossel não estejam acesas. Não era tão belo como à noite, as luzes girando de todas as cores”. No final do capítulo, os Capitães “estavam cheios de desejo de andar nos cavalos, de girar com as luzes” — e surge o arremate piegas: “Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais que tudo, brilhavam na noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas (…)”.

Avançamos na leitura — e a reiteração se torna um esquema de maçante previsibilidade, pois o autor não dispõe de outros recursos. Amado não consegue superar seu limite nem mesmo num trecho de vinte linhas: no capítulo Alastrim, o “padre José Pedro entrou na sala com o coração batendo muito”; a seguir, “o padre José Pedro, enquanto esperava…”; “o padre captara”; “o padre tivera de passar”; “o padre tivera que fazer”; “o padre lembrou-se”; “o primeiro sentimento do padre”; e “o padre José Pedro necessitava…”.

A ideia de que Dora se transforma na mãe dos Capitães da Areia vem anunciada desde as primeiras palavras do capítulo Dora, Mãe, mas é imprescindível repisar a figura: primeiro, na imaginação de Gato, a voz da menina soa como “a voz doce e musical de sua mãe”. Ele diz: “Você é a mãezinha da gente agora” — e o narrador, contaminado, prossegue: “(…) chamando-a de mãe, e ela sorrindo com seu ar maternal de quase mulherzinha”; depois, “olhavam o rosto sério de Dora, o rosto de uma quase mulherzinha que os fitava com carinho de mãe”, “(…) eles todos gargalharam junto com Dora, e a olharam com amor. Como crianças olham a mãe muito amada”. A imagem se propaga sem nenhum acréscimo metafórico: “(…) agora falava como a uma mulher mais velha que o ouvia com carinho. Como a uma mãe”. Um dos Capitães fala: “É como uma mãe… Como uma mãe, sim. Pra todos…” — e volta a dizer: “É como uma mãe… Como uma mãe…”. Para Pedro Bala, o chefe da gangue, Dora se transforma em “esposa, irmã e mãe”, enquanto outro personagem reitera: “É como uma mãezinha”. E outra afirmativa ecoa: “É como mãe!”.

Veja-se, no capítulo Reformatório, a utilização iterativa de “a liberdade é como o sol. É o maior bem do mundo”, proclamada numa lenga-lenga que o autor deve ter considerado original. Nos capítulos Noite de grande paz, Dora, esposa e Como uma estrela de loira cabeleira, a expressão “paz da noite” — ou “a grande paz da noite” — cria ladainha fastidiosa. São apenas alguns exemplos desse estilo paupérrimo, ou melhor, verdadeiro antiestilo, de assustador desmazelo.

Sentimentalismo e doutrinação
Mas por que Jorge “Repetidor” Amado encanta o leitor comum? Porque sua escrita é um pântano de sentimentalismo — como toda subliteratura, reduz a consciência aos desejos, subjuga a razão às emoções. Trata-se de um método para simplificar a realidade — e utilizar essas simplificações como forma de manipulação ideológica. Tudo é óbvio e previsível no romance. Sem chegar à metade do livro, adivinhamos o destino dos principais personagens, sabemos quem será o grevista profissional, o pintor famoso, o sacerdote. Mas a fórmula não é gratuita: as repetições martelam o sentimentalismo, enfatizam a catequese comunista, até que o leitor aceite, sem contestar, as últimas mentiras do livro: “a greve é a festa dos pobres” — e “companheiro” é “a palavra mais bonita do mundo”. Péssimo resultado estético, a reiteração, contudo, serve como pedra de moer consciências, reforçando, página a página, associações mentais enganosas.

Hugo von Hofmannsthal afirmou, em 1927, numa conferência pronunciada na Universidade de Munique, que “nada é realidade na vida política de uma nação que já não esteja presente como espírito em sua literatura”. Se ele está certo, Capitães da areia contribuiu para o delírio e o caos — econômico, político e moral — que, graças à esquerda, vivemos hoje. Não é à toa que, no final do romance, Pedro Bala, exaltado pelas crianças “de punhos levantados”, escuta o samba Companheiros, vamos pra luta. E, ainda pior, não é por acaso que, década após década, este romancinho de doutrinação política tem sido leitura obrigatória nas escolas e nos principais vestibulares do país.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Vianna Moog e Um rio imita o Reno.

Jorge amado
Nasceu na Fazenda Auricídia, Itabuna (BA), em 1912, e faleceu em Salvador (BA), em 2001. Bacharel em Direito, nunca exerceu a profissão, optando pelo jornalismo e pela política. Em 1945 foi eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Por razões políticas, viveu exilado na Argentina e no Uruguai (1941 a 1942), em Paris (1948 a 1950) e em Praga (1951 a 1952). Deixou obra variada, incluindo mais de vinte romances, além de crônicas, contos e memórias.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho