Convergência de utopias (sobre anarquias, autarquias, utopias e realidades)

O direito de criar anarquia. De criar na anarquia
Ilustração: Aline Daka
30/06/2018

O título acima e os cinco potentes parágrafos abaixo foram enviados pela poeta e livre-pensadora Ana Peluso, em diálogo com os primeiros parágrafos do Manifesto : Convergência (ainda em progresso), publicados na edição de fevereiro do Rascunho.

Sem medo de implodir as boas maneiras e explodir a correção política, Ana vira do avesso a própria noção de manifesto, manifestando seu bisturi anarquista nas entranhas da realidade divergente-convergente.

1.
A palavra sentencia a Palavra. A Palavra liberdade Grita. Relampeja palavra controversa conjurada ao avesso do que crê ser a Palavra [Porrada] P A L A V R A ~ P O R R A D A Empoderada. Malandra-funk para falar de epistemologia. De melhor regime do mundo. [Que mundo] Palavra de quebrada. Ginga de virar geleia. Utopia das bostas. Chamada: “A BEsta: “Maior ferramenta natural de comunicação humana passa a ser considerada arma letal.”, “A pena pode variar. Redução em pacote combo não é descartada””. A ex-Palavra Ponte. Entre uma casa e outra. Entre um homem e outro. Entre dados. [Qual deles?] O homem de carne virando titânio nesse alicerce de alice no país das maravilhas. Tantos anos espelhos. [Ninguém mais vê ninguém] A palavra criando ferrugem. Em torno da Palavra. Coragem é a dos Dias em que os homens não mais se entenderão. A Palavra encurralada por baixo da vida dos homens. Da vida vazia dos homens. A palavra gueto. A palavra esgoto. [A Palavra sumindo nos dias em que se fala outra fala] Buscam-se recursos estilísticos que reconheçam o crescente sumiço da Palavra, e se a palavra ainda dirá tudo que a Palavra dizia. Não se encontra recursos estilísticos. Descobre-se umotopia. Da Palavra dizer tudo. Ninguém mais quer saber de tudo. Tudo agora é nicho. Reduções e reproduções de um homem pós-solitário. [Só preciso saber se você concorda comigo] “A BEsta: “Abertas as inscrições para o Full-Fall”, “O Governo quer saber o que você pensa””. [Você também devia saber]

[O céu está caindo/ Todos veem/ ninguém faz nada// Assim é o homem pós-solitário/ Fala da solidão do século/ Mas só fala]

2.
O direito de criar anarquia. De criar na anarquia. De anarquizar. Ou uma utopia, já que globalismo não é anarquia, nem arte naïf. É geometria. E há geometria bela. E há as bombas. Muros serão derrubados. Uma só gente, entes, uma só nação. Alguém passou por sua pele, adentrou sua carne. Seu último reduto foi invadido. Chips sabem o que você sente. Você não sente nada. Você não sabe mais sentir. Como um remédio para o mal de se esquecer, chips lembram tardiamente: “Não siga as massas. Nunca siga as massas. Jamais siga as massas”. Tarde demais. Seu núcleo anárquico foi desmontado. Você não tem mais autonomia, eu. É apenas um conjunto de respostas a estímulos. Um pouco maior que uma ameba, o que não evidencia importância alguma. Sua vida consiste em ser, sem saber que é. No fundo, nada que não advenha da natureza. Do pó vieste ao pó voltarás. Uma trilha quase apagada de memória resiste: foi a pólvora o começo de tudo.

3.
A literatura subindo os degraus do compadrio. A utopia das palavras bem-ditas não sendo ditas. Eterno devir de uma literatura mal-amada. Falta leitor, sobra escrevente. O cartório de Babel emite falsas notas sobre a Ars Poética. A poesia virando clichê, grafias rolando exemplares de uma literatura confundida. Talvez o mal dos tempos. E a falta de compromisso com o apostolado poético. O ritual da lírica encantoado pelos bits, não raro malfeitos, de um rap-espelho. Mais vale com quem se anda do que aquilo que se escreve. Submundo da lira. Arcos atravessam desafetos. Não importa mais o que se escreve. O que se escreve deve necessariamente entrar na pauta de agradecimentos aos globalistas. O politicamente correto envenenando o livre pensamento. O protagonista do romance detido no segundo capítulo. No primeiro ele asseverou uma controversa hipótese de roubo do argumento por subjugação simbiótica de par/agente literário.

4.
Em breve teremos edição de DNA. À prestação. Era para, no mínimo, estarmos nos entendendo. Não que não estejamos verdadeiramente tentando. É que dentro também existe um mundo a ser sabido e somos nuclearmente diferentes. Se olharmos só para fora nunca vamos descobrir quem somos. Se olharmos só para dentro, também não. A maioria de nós alterna olhares, dentro e fora. O que significa que estamos indo para algum lugar. Só que, mesmo descontando os fanáticos do alheio e os trancafiados, ainda é impossível certificar a capacidade de apreensão de todas as singularidades. Assim de repente, de todos, em apenas uma única vida humana. Só há reconhecimento se há respeito. E acontece que não nos respeitamos. A sociedade vive uma espécie de guerra fria-quente. E uma guerra não reconhece outro lado, uma guerra destrói o outro lado. Alguns podem dizer que reconhece para destruir. Mentira. Destrói para não reconhecer.

5.
Pensar na utopia também como ilusão temporal. E por dois motivos. O primeiro diz respeito a cada coisa no seu tempo, e o segundo diz da duração de cada coisa. Algumas utopias morreram pela inviabilidade, outras pela coletividade, outras ainda pela temporalidade, e geralmente pelas posições polares que ocupam. Tentar polarizar o ser humano é o mesmo que tentar polarizar uma estrela, o máximo que se consegue é que ela pare em pé. E quando se logra um falso êxito inaugura-se um longo período de trevas. Como este que, nós, humanos, vivemos desde que o mundo é mundo. Está fora de cogitação o reconhecimento de todos os raios de uma estrela. Não parece que seria bom reconhecer o coletivo de raios estelares como o colar da orla do mar de singularidades coexistindo pacificamente. Precisa mesmo acontecer o arrastão. O conceito de paz é assim tão abominável? Não há mais nada a se explorar, então podemos nos matar de todas as formas. Por uma visão política. Por questões estéticas. E não seria a visão do mundo um conceito puro de estética? A escatologia, por exemplo, seria um conceito estético pouco aceitável para quem não compreende a transformação, o princípio da transformação. As alterações de idioma, outro exemplo, oposto. Mesmo sabendo que o idioma forma a maneira do indivíduo pensar (carece de fontes), mexe-se nele o tempo todo. Nossos avós chamavam nossas avós de ellas. Vai ver um éle a mais seja mais honesto. Então a pergunta é aonde se quer chegar? Porque ao mesmo tempo em que nos reconhecemos variáveis, negamos esse mesmo direito ao outro. Tentamos impedir alguém de ser, por não aceitarmos sua constante variável. Que é constante por ser ele — o outro —, e variável porque ele é diferente de mim. O ser humano é um fator matemático. Mas também é gente. Algo como um código-fonte chorar porque está sendo usado para que se possa ligar um computador. E até que fique provado que os códigos-fontes não têm alma (carece de fontes) fica meio esquisito ninguém ligar o computador. Uma convergência de utopias, por exemplo, seria o reconhecimento do computador, do código-fonte, da alma, da gente, de variável. Vai ver, todo o mundo se reunindo em torno da chama dos diferentes, permitindo que os diferentes se manifestem, sem que isso cause ódio, mágoa, rancor. Em vez de divergência, colhamos calor, que é energia, que é ação. Como previsto, outra utopia morta. Uma que por acaso desse certo.
[Ana Peluso]

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho